SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 16 de agosto de 2010

JARDIM DE PEDRA (Crônica)

JARDIM DE PEDRA

Rangel Alves da Costa*


Suas mãos tocaram, seguraram, removeram, e por isso mesmo era testemunha da transformação da primavera num jardim de pedra. Não era desconhecida aquela paisagem, aquele espaço na natureza onde antes brotavam plantas, flores e adornos, pois era o seu jardim. Só que agora tinha que se contentar em ter um jardim de pedra.
Tudo começou quando o inverno chegou e trouxe consigo as chuvas próprias da estação, primeiro molhando tudo e depois encharcando tudo, para depois fazer ressurgir a plenitude verdejante. Essa seria a lógica da natureza. Seria se não fossem os olhos da menina, os mesmos olhos molhados que enxergava toda a aridez da vida em sua frente.
Há muito que os passarinhos, as plantas, as folhas, os bichinhos, até mesmo os espinhos, começaram a sentir que algo muito estranho, muito diferente estava acontecendo com sua amiguinha de todas as manhãs e todas as tardes. Até a brisa, o vento e a ventania, e depois o orvalho, o sereno, a chuva e a tempestade perceberam uma estranha transformação na menina. O sol ficava inquieto em ver toda aquela situação; a lua nem se fala, coitada, que chegava a iluminar mais forte só pra ver se entrava no quarto da menina e saber o que estava se passando com ela.
Era como se o jardim e toda beleza existente ali tivesse perdido todo o significado. E antes dessa tristeza toda se abatendo sobre a menina tudo, cada pedacinho do jardim, tinha um significado muito especial, chegando mesmo a ter uma relação de amigos, como se pessoas fossem os elementos da natureza e dos astros.
Perguntava às flores se estava bonita naquela manhã, que roupa vestir para ficar parecendo uma princesa ou como pentear o cabelo para ficar igual a uma rainha. Pedia às borboletas que cheirassem os seus braços para ver se realmente estava perfumada. Implorava sempre aos galhos mais fininhos e folhas que se juntassem em tranças e formasse uma grinalda bem bonita para ela colocar nos cabelos. Implicava sempre com as flores que ficavam tristonhas mesmo com a manhã maravilhosa e o sol brilhando. Muitas destas respondiam que até gostariam de estar felizes, mas o coração amargurado impedia que exalassem amor e alegria.
Certa vez organizou uma brincadeira de amigo secreto no jardim e convidou todos a participar. Distribuiu bilhetinhos com o nome de cada um e somente assim ficaram sabendo das amizades e inimizades. A roseira, que tirou o jardineiro como amigo secreto, deu um belo presente, mas passou-lhe na cara que não suportava o seu jeito estúpido, arrogante e bruto como a tratava, principalmente porque, dentre todas as flores, era a mais sensível e que merecia mais carinho e atenção. O lírio foi defender o amigo e chamou a outra de egoísta, metida a besta e flor vulgar. O beija-flor interveio e disse que todas deixassem de besteiras, pois todos tinham os seus defeitos e cada um era amado e adorado a seu modo, mesmo que alguns fossem preconceituosos e vissem os outros com discriminação.
A menina sorria que vermelhava toda, ficando parecendo um moranguinho exposto ao sol. Mas isso foi um dia. Ontem ou antes de ontem, talvez, pois verdade é que ela estava muito mudada e quase irreconhecível. Os amigos do jardim, aqueles de vida noturna como o sapo, os vaga-lumes, os cactos e as flores que desabrocham à noite, fizeram seresta na sua janela, mas ela nem abriu a vidraça. Os outros amigos organizaram uma retreta, com bandinha e fogos, e nada. Ela nem apareceu por lá.
No outro dia, logo cedinho, bem antes que qualquer flor ou passarinho imaginasse que ela aparecesse, eis que ela surge toda tristonha e diz: "Ontem eu senti que alguns de vocês estiveram no meu quarto tentando me ver. Eu não pude falar com ninguém porque estava arrumando minhas coisas para ir embora daqui. Estava evitando dizer isso a vocês, mas depois de amanhã vamos nos mudar deste lugar, pois vão construir um prédio aqui e esse jardim com tudo que há nele vai se transformar num jardim de pedra. Vim me despedir e dizer que irei construir um jardim igualzinho na casa nova. Adeus".
"A gente pode ir junto?", perguntou uma avenca. "Poder podem, mas não sei como", respondeu a menina. "Vá derramando gotinhas do seu perfume pelo caminho que a gente chega lá, e sem que você perceba já estaremos na sua manhã", disse o lírio.
E na casa nova da menina foi surgindo um jardim que todos ficavam admirados de ver tanta beleza nas plantas e nos passarinhos. Ninguém sabia como aquilo tudo era possível. Só a menina.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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