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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

RETRATO (Crônica)

RETRATO

Rangel Alves da Costa*


Não lembro mais onde nem quando, mas certa vez me contaram uma história de uma velha fotografia, já amarelada na moldura antiga envidraçada, colocada na parede de uma casa parecendo de presença eterna no lugar. Várias famílias moravam e se mudavam daquela casa e o retrato permanecia lá, velando a solidão do ambiente e talvez esperando os novos moradores. Fato é que ninguém sabia quem era aquela senhora bonita, de olhar triste e leve sorriso que o tempo mantinha ali.
Pelo aspecto do rosto no retrato, demonstrando ser uma mulher pelos trinta anos. Segundo as marcas dos tempos já presente no papel amarelado, no vidro e na madeira já em tom de um marrom envelhecido, certamente que aquela dama ou já estaria muito mais envelhecida ou já teria partido deste mundo. E daí surgirem muitas curiosidades e indagações.
Quem seria aquela mulher, qual o seu nome, a qual família pertencia? Por que jamais tiraram aquele retrato da parede, mesmo que esta já tenha sido pintada por diversas vezes e até passado por reformas? Onde estaria aquele sorriso, aquela tristeza, aquelas rugas de agora ou aqueles olhos fechados para sempre? Por que tamanho esquecimento, tamanho desrespeito com aquela pessoa ali retratada? Por que as outras pessoas jamais pensaram na existência daquela fotografia e nem se preocuparam em saber de quem se tratava.
Dizem que à noite, nos instantes que a sala estava vazia ou a casa ficava abandonada a fotografia chorava. Outros afirmam que aquele sorriso era mais verdadeiro do que o retratado fixamente dentro da moldura, pois ela esboçava um leve sorriso após as pessoas passarem e olharem ainda que rapidamente em sua direção. Mas tudo é lenda, imaginação, vez que a única verdade é que ali havia uma velha fotografia, um antigo retrato emoldurado esquecido na parede.
Contam que certa feita os moradores de então resolveram se mudar e deixaram a casa fechada com o retrato na parede. A mulher do retrato chorou muitas vezes com aquela solidão imposta, dia e noite na escuridão da sala, mas aos poucos foi se acostumando mais uma vez e até demonstrando um pouco mais de alegria quando percebeu que uma nova família iria fixar residência ali.
Viu quando um casal chegou por ali, acendeu as luzes, conheceu os quartos e salas e confirmou que se mudaria assim que uma pequena reforma fosse feita. Mandariam pintar a casa todinha, mas antes providenciaria a derrubada de uma daquelas paredes para a sala ficar mais espaçosa e ventilada. Então seria a parede da fotografia que seria derrubada. Seria o fim daquele retrato, daquela tristeza retratada, daquele leve sorriso, daquele tempo de um dia?
Quando o casal retornou com os homens que fariam a derrubada, reforma e pintura, desta vez veio acompanhada de seu filho único, um molecote curioso contando com os seus cinco anos. Assim que todos chegaram próximo à parede, o menino, ouvindo as ordens pronunciadas pela mãe, puxou a mão desta e disse: "Olha mãe, o retrato de tia Milú. E ela sorriu pra gente, eu vi".
A mulher se espantou e no mesmo instante se voltou para a fotografia, olhando-a fixamente, sem acreditar no que ouvira. "É mesmo Zequinha, é tia Milú. Mas não pode ser, meu Deus. Como você a reconheceu, pois jamais chegou a ver Milú? Venha aqui Paulo". E mais espantada do que tudo chamou o marido.
Sua irmã, Maria de Lurdes, a Milú do retrato ali esquecido na parede, um dia havia tirado aquela fotografia para enviar como presente para um amado que sempre a rejeitava. E como ele não aceitou o presente e o enviou de volta, o retrato foi moldurado e colocado ali. Depois esquecido e esquecido. E ela, coitada, perdeu o juízo de vez e aos poucos foi definhando, até perder também a vida, bem antes de Zequinha nascer.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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