SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 11 de agosto de 2010

DAS TERRAS DE ONDE VIM (Crônica)

DAS TERRAS DE ONDE VIM

Rangel Alves da Costa*


Nas terras de onde vim, sabiá cantou um dia que saudade ia apertar, e como dói sabiá. Canário também me disse que lágrima ia rolar. Não quis acreditar passarinho e como é profundo o chorar.
Lembro de todo mundo. Recordo de João, Maria, Zefinha, Inácio, Cabeleira, Ingrácia, todo mundo da feira, todo mundo do pasto, todo mundo do mato, todo mundo do mundo, todo mundo me dando adeus como se eu fosse guerrear. Quase não partia com tantos abraços. Minha tia chamando e dando dois contos de réis, minha vó chorando porque não tinha nada pra dar e o meu primo amalucado querendo me amarrar de todo jeito. "Num vai não, num vai não". E arribei de lá.
Quando saí de lá, se um dia saí que não sei, chovia e fazia sol, tempestava, relampejava e clareava que nem um paraíso azul e florido. Maluquice do sertão, mas tudo por minha culpa. Ninguém queria que arredasse pé não.
Não sei por que, mas amado demais fui e ainda sou, mesmo sem ter engravidado a terra com semente e fruto nem menina novinha nenhuma. Até que gostaria de amar mais de cem, só pra Joaninha ficar com raiva e deixar de ser tão bonita e cheirosa. Eita mulher que eu gosto e que um dia vou trazer com tudo, com vestido de chita, com flor no cabelo, com o perfume de lavanda e o batom todo vermelho de sangue.
Gosto de você Joaninha, eu juro, e tudo que disseram de mim é mentira, e juro de novo só pra você acreditar. Zefa não existiu, Lúcia não existe, Tonha foi invenção, Ceição foi fraqueza do coração, mas deixa pra lá, pois você toma o lugar de todinhas e ainda me enche de amor demais.
Agora mesmo tô com saudade, mas não é nem do cuscuz nem da pamonha, do preá assado ou do jerimum com leite, mas é só de ter você deitado numa rede de tarde e de noite, fazendo brincadeira que alegrava o resto e deixava a gente com vontade de fazer muito mais.
Um dia cismamos de fazer e quando fomos pro escondido o lugar já tava cheio, com gente deitada na moita e aquela sonsa se sonsando por trás de um pé de pau. E pela frente também. E a danada ainda disse que era mentira. Danada mentirosa era ela, que até disse que tava catando flor. Flor no sertão, não sei não. Sei não, mulher safada tem demais por lá e tenha cuidado Joaninha. Lembre que você é minha e só minha Joaninha.
Quando o dia se vai por aqui e a tarde se faz dolente, fica até doente com a saudade que bate quando anoitece. Olho pra lua e não vejo, estrela é só um tiquinho ou avião que vai passando. Deve ser o bicho que zoada demais nos ouvidos da gente.
Gosto não, Joaninha. É tudo muito grande e muito feio, muito diferente e nada do povo se falar um bom dia ou boa tarde. Noite isso não existe. É coisa de medo e de porta trancada, se no barraco tiver porta.
Diferente é, diferente é, muito diferente do que tem aí. Avião de bico e pena a gente tinha demais, tinha lua de verdade, tinha estrela pra dar e vender. Tinha noite verdadeira, tinha bicho pra medar, tinha bicho e lobisomem, tinha homem escondido e tocaia, tinha vida e tinha morte, tinha susto e sorriso.
E tinha muito mais, Joaninha, pois tinha também manhã, tinha canto de galo e berro de bicho, tinha gato miando e passarim cantando, tinha galinha ciscando, porco mexendo em lavagem, tinha gado e leite quentinho, tinha terreno já ardendo no pé logo de manhãzinha. Tinha horizonte e azul, tinha nuvem e boniteza, tinha gente alegre e tristeza, tanta solidão e dureza, menino doente de monte, menina esperando rapaz, namoro bonito e bom, no açoite e chicote, porque tinha de ter também.
Aqui fico não, nem mais um mês de jeito nenhum. Sou homem, corajoso, valente, com sangue de verdade nas veias, temente somente a Deus. E Deus sabe que meu caminho é outro, que não sei jogar tijolo pra cima nem varrer jardim de madame, pois só aprendi na vida a ser feliz lá na roça, plantando, suando, colhendo, chiqueirando gado e laçando e derrubando animal.
É o que sei fazer, e tudo mais que sei é também pisar na terra, tomar banho de riacho e falar com a natureza. O sertão é meu amigo e uma vez ele me disse que gostava de mim como filho. Eu também gosto dele. Gosto tanto do danado que logo logo vou voltar.
Joaninha, quando eu chegar não se espante não. Nem pareço que sou eu, mas sou. Outro dia me olhei e nem me vi, e só me achei quando pensei em vocês. E aí eu sorri. E os dentes apareceram no espelho...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Toninho disse...

Um cronica de canto da despedida,que muito temos por um motivo ou outro.Aquela saida das coisas que fazem nosso dia a dia. O rompimento melancolico na busca de dias melhores,mas que nao serão suficientes para pagar as nossas boas lembranças de nosso torrão.Interessante!Me vi saindo da minha cidade 1978 para estudar na capital,com esperança de voltar e nunca aconteceu...