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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 26 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 87

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 87

Rangel Alves da Costa*


Levantou uma coberta branca sob a qual estava estendido seu amigo no leito da sacristia e o encontrou quase irreconhecível. As feições de um arroxeado quase enegrecido diziam do sangue afetado que o levou à morte. Só poderia ter sido envenenamento, constatou rapidamente. Não era médico, não entendia quase nada de medicina, mas aquele quadro não daria outro diagnóstico.
Esse espanto, essa perplexidade e essa constatação foram coisas de segundos, pois no instante seguinte já estava olhando para o rosto sorridente do seu amigo. De olhos abertos e brilhantes, com sorriso nos lábios e apenas deitado naquele leito para descansar, podia ouvir o Padre Josefo dizer:
"Feliz do homem que entende o homem e a morte do homem. Entender a morte é conhecer a vida e o que pode levar à morte. É feliz o homem que vivendo pode entender a morte. Ao entender esse mistério, ninguém poderá ficar tão triste ao seu encontro que não entenda seu significado, pois nada mais é do que uma voz dizendo: por enquanto evite esse caminho, vez que a continuidade da vida está naquela outra estrada...".
E como se estivesse fora de si diante desse mistério, Lucas nem percebeu quando encobriu novamente o rosto desfalecido do amigo e pôs as mãos diante da própria face e chorou copiosamente, sem vergonha alguma de expressar tão fortemente o sentimento de perda e de abandono. "Eli, Eli lama sabactani!", Deus, meu Deus, porque me abandonaste! Diria se tivesse voz pra gritar.
Deu um leve toque no amigo e se despediu com o coração dilacerado, partido em quantos sentimentos de perda e de adeus pudessem existir naquele momento. E ao levantar, vieram-lhe palavras bíblicas ao seu pensamento:
"O velho rito terminou e vai ser inaugurado um novo. A Velha Aliança chegou ao fim e vai ser substituída pela Nova. A vítima dos sacrifícios não mais será o vitelo, a pomba, o cordeiro. A Nova Aliança vai ser alicerçada sobre Mim, a Nova Vítima, a Vítima Eterna, a Vítima sem mácula, o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do Mundo, Aquele que se oferece ao Pai para remissão de todos os pecados dos homens. Será um ritual perpétuo de Amor, um memorial perpétuo a renovar-se a cada hora por toda a Terra. Este será o grande milagre do Amor, que agora vou realizar, não havendo na Terra nada superior a ele nem nada que se lhe compare. Será um milagre de união e comunhão entre Mim e vós e vós entre uns e outros. Eu vou partir mas não vos deixarei órfãos, porque ficarei convosco até à consumação dos séculos".
Daí por diante sua vida seguiria um novo rito, mais sozinho, mais desacompanhado das boas palavras do amigo, porém com a eterna força divina para dar prosseguimento à sua luta. Faria consigo mesmo e com os amigos que ainda restavam ao seu lado uma nova aliança objetivando realizar o grande milagre da felicidade do próximo, daqueles carentes mesmo de qualquer sopro de afeto e de atenção.
Assim que ia alcançando a porta para sair da sacristia, eis que ouve pessoas conversando baixinho do outro lado.
"...mas o serviço foi feito e bem feito. Quero que recolham urgentemente todos os sinais e marcas que possam existir aí dentro. Façam sumir o vinho e até os restos da taça quebrada. Lavem o chão bem lavado no local onde ele caiu e derramou o vinho. Se o homem ao menos sonhar que deixamos alguma prova para que algum maluco queira investigar, estaremos todos ferrados. Eu não, vocês que não têm costas fortes. Agora telefone novamente e mande que o motorista com o carro da funerária se apresse, pois não quero esse defunto com aquela cor aqui nem mais um instante. Mandem ele pra capital agora mesmo. Já pensou se alguém entende ao menos um pouquinho de medicina e vê o homem como ficou depois que tomou o vinho? Estaríamos todos ferrados. Eu não, que ninguém pode dizer nada contra mim, mas vocês ficariam ferrados. Já pensou quantos anos de cadeia pega quem envenena outro? E o pior: já pensou o que passará depois de morrer aquele que mata um padre envenado? Deus me livre. Agora cuide. E depois que esse que está aí sair não deixe ninguém mais entrar na secristia. Ah!, eu ia me esquecendo, o homem mandou que eu passasse lá amanhã para receber o pagamento pelo serviço".
Lucas só ouviu isso tudo porque achou curioso o início daquele diálogo meio escondido. Depois que constatou do que se tratava não achou mal algum em ficar para ouvir o restante, principalmente diante das provas que estava obtendo. Mas assim que resolveu ir embora de vez, quando cruzou a porta se deparou com o delegado e um policial. Aquelas palavras eram do delegado, não tinha dúvidas.
Já ia seguir sem falar com os dois, mas foi percebido pela autoridade policial. "Sei que eram muito amigos, então aceite os meus pêsames Lucas". E este respondeu: "É assim mesmo a vida, vivemos sempre entre a água e o veneno".
E o senhor delegado quase infarta com tais palavras.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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