EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 84
Rangel Alves da Costa*
Lucas sentiu que o Padre Josefo aparentava um misto de indignação e temor ao se despedir. Não seria para menos, diante do relato dos últimos acontecimentos. Desse modo, o problema se avolumava ainda mais, pois descontentes em querer atingir somente ele, agora se voltavam também contra o seu amigo sacerdote.
Se ele poderia ser traído por qualquer um que estivesse ao seu redor, como realmente já tinha acontecido com relação a Ester, o mesmo poderia acontecer com o padre, vez que dentro da própria igreja o inimigo talvez pudesse mostrar sua feição no anel no dedo e no barrete violeta e no solidéu.
A traição, que é tão comum nos homens, ao menos deveria poupar o traído de saber quem foi o traidor, de modo que o sofrimento pela traição não seja triplicado ao saber de quem partiu o sempre desumano e reprovável ato. Era o que pensava Lucas. Infelizmente não cabe ao homem fugir dessas armadilhas, apenas observar que a história se repete desde os tempos bíblicos.
"Pois não é um inimigo que me afronta, então eu poderia suportá-lo; nem é um adversário que se exalta contra mim, porque dele poderia esconder-me; mas és tu, homem meu igual, meu companheiro e meu amigo íntimo. Aquele meu companheiro estendeu a sua mão contra os que tinham paz com ele; violou o seu pacto". Como diria o Salmo 55.
"Aquele a quem eu beijar é ele. Prendei-o e levai-o com cuidado. Assim que ele se aproximou de Jesus, disse: Rabi!, e o beijou. Lançaram-lhe as mãos e o prenderam. Como ensina o Evangelho de São Marcos.
"Na verdade, na verdade vos digo que um de vós me há de trair. Então, os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem de quem ele falava. Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus. Então, Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de quem ele falava. E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é? Jesus respondeu: É aquele a quem eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão". Não mentiria o Livro de São João.
"Disse-lhe Pedro: Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o serás para mim. Replicou-lhe Jesus: Em verdade te digo que, nesta mesma noite, antes que o galo cante, tu me negarás três vezes". É o que ensina São Marcos.
"Ainda que tenhas dito contra ele palavras desagradáveis, não temas, porque a reconciliação é possível, salvo se se tratar de injúrias, afrontas, insolências, revelação de um segredo ou golpes à traição; em todos esses casos fugirá de ti o teu amigo". Eis a lição do Eclesiástico.
"Quem lança uma pedra no ar, a vê recair sobre sua cabeça; a ofensa feita por traição atingirá também o traidor". Ensina ainda o Eclesiástico.
Ainda que na desconfiança, confiar no próximo. Não poderia ser diferente, era o que Lucas continuava imaginando. Ora, mesmo sentindo-se protegidas, as pessoas não podem fugir de determinadas armadilhas que são muito mais fruto do destino do que do próprio homem. É que muitas vezes as dores surgem, os desgostos e os aborrecimentos acontecem para que o indivíduo não fuja de suas responsabilidades para com o desconhecido e não se sinta tão completamente fortalecido a ponto de achar que vive em eterna segurança e que nada vai acontecer. Daí que os dissabores existem precisamente como alerta para que todos sintam que o inesperado pode fazer uma visita a qualquer instante.
Com tais pensamentos na cabeça, Lucas já estava a caminho da cidade para retribuir a visita do sacerdote e ao mesmo tempo conversar sobre outros temos que continuavam lhe intrigando muito. Talvez fosse o caso de relatar ao promotor, como fizera o sacerdote, toda aquela situação de ameaças e agressões vivenciadas por ele e os bens de sua propriedade nos últimos tempos. Talvez o órgão promotorial pudesse interferir para dar um basta naquilo tudo. Talvez relatasse tudo à imprensa, de modo que os mandantes das atrocidades ficassem sabendo que os escândalos poderiam envolver os seus nomes e assim recuar nas ações futuras. Mas tudo era talvez, e somente após uma conversa com o amigo é que decidiria melhor o que fazer.
Assim que foi colocando os pés na praça da matriz encontrou beatas chorando, quase levadas ao desespero. Olhou mais adiante e viu um grande número de pessoas diante da igreja. Neste momento Paulinho surgiu à sua frente numa aflita correria:
- O Padre Josefo foi encontrado morto dentro da sacristia!
continua...
Poeta e cronista
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