EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 79
Rangel Alves da Costa*
Após se certificar que o líquido venenoso havia sido totalmente ingerido, Ester guardou rapidamente o frasquinho e se pôs a olhar sorridente para Lucas. Não durará nem cinco minutos e você encontrará o destino que bem merece, que é a morte, deixando aberto o caminho para os que sabem ser vitoriosos na vida. Farei com que meu pai compre isso aqui e mais tarde eu mesma cuidarei para que os trabalhos sociais que continuarão sendo desenvolvidos se transformem numa porta de entrada para o meu mundo na política. Se não quis pelo bem, será pelo mal. E agora vá queimar todinho onde bem merece, seu idiota pobre de dinheiro e de tudo. Tais eram as palavras pronunciadas no pensamento maldoso.
Em seguida se dirigiu até a sala onde os meninos estavam. Assim que os avistou, demonstrando no rosto um aspecto de grande e surpreendente felicidade, disse que não se preocupassem que o seu amigo já havia sido medicado e que não duraria muito para acordar bem melhor e rapidamente se recuperar por inteiro. E ficou conversando outras coisas para que eles não fossem ao quarto até que o efeito do veneno se consumasse. Minuto a minuto ficava olhando nervosa para o relógio.
Esperaria dez minutos. Após esse tempo chamaria os meninos para irem juntos até o quarto e lá faria outro exame na presença de todos. Como Lucas já havia morrido, estava preparada para fingir um grito bem alto e outras encenações, chorando e afirmando que não sabia como e porque aquela desgraça tinha ocorrido, já que ele não corria nenhum risco de morte. Iria se insurgiria contra tudo o que fosse de mais sagrado, se lastimando e penitenciando, até que encontrasse o instante ideal para sair dali, logicamente dizendo que iria providenciar para que pessoas fossem cuidar do cadáver. Estava tudo planejado. Só que não deu certo.
Ao invés das coisas acontecerem segundo o planejado, quando ela retornou da sala com os meninos e entrou no quarto e se dirigiu até a cama onde o doente estava, no instante que se debruçou sobre ele para ver se já havia deixado de respirar, o que encontrou à sua frente foram dois olhos surpreendentemente abertos e mirando bem dentro dos seus, como se quisessem confirmar o que estava vendo. E mais, pois Lucas falou: "Você por aqui, Ester?".
Aqueles olhos lhe olhando, e logo olhos que deveriam estar mortos, e estas palavras que ela não queria acreditar estar ouvindo, fez com que Ester desse um pulo que quase se estende toda pelo chão. "Não, não pode ser, esse maldito ainda está vivo e me olha e chama meu nome, não pode ser".
E saiu enlouquecida, desesperadamente correndo, com olhos faiscando e boca gritando palavras incompreensíveis e outras vezes pedindo socorro. Tropeçava e caía, levantava e ficava girando em rodopios, como quem procura enxergar algum monstro que lhe persegue, e corria novamente em total desespero, com o cabelo em desalinho, toda enlameada e a face crispada de terror.
A futura médica estava completamente enlouquecida. A chuva que lhe molhava completamente permitia que ficasse ainda mais com aquele aspecto triste dos que não têm mais proteção no mundo, dos que estão jogados na lama porque assim desejaram. Tomou o veneno que ofereceu ao outro sem precisar abrir a boca.
Os meninos não compreenderam nada daquela cena, nem mesmo sabiam se sorriam ou se demonstravam espanto. Verdade é que realmente não saberiam nunca sobre o que realmente havia acontecido, pois o anjo superior determinou aos outros anjos que se incumbissem de colocar outros pensamentos naquelas cabeças jovens para entenderem aquilo como normalidade. Contudo, não poderiam deixar de expressar o imenso contentamento e satisfação em ver Lucas acordado e aparentando estar totalmente recuperado. E estava mesmo, pois as forças superiores se encarregaram de levar para bem longe aquele mal que tanto lhe afligia.
Surpreendente também é que não perguntou onde Ester teria ido, vez que há poucos instantes ele a tinha visto sentada ao seu lado. Do mesmo modo não perguntou nada aos meninos sobre o que havia acontecido. Não perguntou nem foi perguntado. Mais uma vez a névoa do bem havia sido espalhada por ali para que as coisas acontecessem como deve ser no destino do homem: uma força superior sempre dispõe sobre o que existe, o que existirá e o inexistente.
A única coisa que Lucas perguntou após levantar foi se continuava chovendo. E Paulinho respondeu que sim, e chovendo muito. Então ele disse: "Mesmo com toda essa chuva, ainda assim há sol sob o céu. Vamos lá na varanda ver como brilha essa coisa incompreensível por todos nós, que é a ação divina na natureza e no mundo".
A chuva caía forte. Mas havia o sol em meio às nuvens. Ainda assim havia o sol...
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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