EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 77
Rangel Alves da Costa*
Realmente, lá fora havia um mundo. E o mundo que havia lá fora não era aquele que o mal desejava impor, que queria forçosamente alastrar como se a vida não fosse para ser vivida em felicidade. Estão certos aqueles que pregam a vida como campo fértil para semeadura do bem e para a colheita das grandes realizações. Qual plantação que pede para que as ervas daninhas sejam extirpadas, assim é a vida para fazer florescer sempre coisas boas, afastando as raízes do mal que insistem em brotar ao lado do melhor que se deseja ter.
Mesmo com o corpo ainda um pouco dolorido e meio cansado pela noite angustiante, Lucas resolveu procurar um guarda-chuva e caminhar pelos arredores. Se sua mãe estivesse ali logo gritaria que nem pensar em fazer aquilo, pois os vapores da chuva que ainda caía seriam como veneno para o corpo doentio. E se houvesse uma recaída daqueles frios e dores não haveria mesmo jeito, senão ir para o hospital.
A primeira coisa que fez foi seguir em direção à praça da cruz, ficando por ali alguns instantes e observando algo que especialmente lhe despertou a atenção. Na madeira talhada para dar forma à imagem estavam surgindo pequenos pontos esverdeados. Ao se aproximar mais para ver do que realmente se tratava, Lucas percebeu que estavam brotando plantinhas.
Assim, da madeira morta estava ressurgindo vida, e não porque chovia torrencialmente desde o dia anterior, mas por um fator ainda desconhecido por ele. Se ao menos pequenos pedaços da casca da árvore estivessem sido preservados tudo bem, pois dali poderia brotar novos galhos. Mas não, o que se via era muito diferente. Até onde ele entendia de árvores, jamais soube que a madeira serrada, totalmente recortada e trabalhada para dar forma a um objeto, pudesse fazer brotar raízes, plantas e novos galhos verdejantes.
Depois procuraria se inteirar melhor sobre aquela novidade instigante. Deixou a praça da cruz e se dirigiu até o barracão, passeando pelos seus lados para verificar se estava tudo na normalidade. Ali por fora estava tudo em ordem, porém o mesmo não aconteceria lá dentro. Ao abrir as portas, o que viu à sua frente o deixou totalmente assustado. Fraco e doente como estava, por pouco não se desequilibra e tomba ali mesmo. Diante do que viu e do estado debilitado em que se encontrava, desmaiar seria perfeitamente normal.
Pelo chão, em cima das cadeiras e bancos, embaixo da mesinha, por todos os lugares, se acomodavam galinhas, perus, pombos, porcos, bois, gatos, cachorros e outros animais. Mas não acreditou mesmo foi quando enxergou cágados, papagaios, uma, duas raposas e um pavão.Até uma onça estava ali. Não poderia ser, pensou. E logo começou a procurar entender se aquilo seria possível de estar acontecendo. E sempre encontrou não como resposta.
Não seria possível porque as portas estavam fechadas. E como eles haviam entrado ali? Não seria possível porque aqueles animais não faziam parte de sua propriedade e nem da vizinhança. E como teriam chegado ali? Não seria possível porque há muito tempo que nenhuma onça era avistada por aquelas matas, desde que começou o desmatamento desenfreado. E de onde ela teria surgido? E os outros animais, como as raposas, os cágados, o papagaio e tantos outros que estavam ali, como teriam aparecido e de onde e como vieram? Verdade é que não tinha nenhuma resposta para o que estava ocorrendo. E fazer o que agora, meu Deus? Contudo, o mais preocupante foi quando se perguntou: Será que estou enlouquecendo?
Ficou por ali alguns instantes verificando de perto o inacreditável, andando em meio aos animais dóceis demais diante das características de cada um, e dizendo a si mesmo que animais de verdade não teriam aquele comportamento. E se tudo ali fosse obra de sua imaginação, fruto da sua mente ainda marcada pela fraqueza provocada pela doença? Tocou num pombo e ele voou; fez o mesmo com um papagaio e ele falou "Lucas, você está doente Lucas". Papagaio fala e ele entendeu. Mas por que dizer exatamente isso?
Resolveu que deixaria as portas do barracão abertas e voltaria para casa. Teria que procurar urgentemente um médico na cidade. Antes disso tomaria um chá e algum analgésico. E quando já estava deixando o barracão enxergou Paulinho, Antonio e Pedro chegando debaixo de guarda-chuvas, porém fazendo festa no lamaçal por onde passavam. E assim que avistaram Lucas, Paulinho gritou:
- A gente aproveitou essa chuvarada toda para fazer uma visitinha. Não é possível que estejam vigiando a gente debaixo desse pé-d'água todo. O barracão conseguiu ficar em pé Lucas?
Antes mesmo de cumprimentar os amigos, ele pediu que fossem rapidamente até o barracão e verificassem se encontravam alguma coisa diferente lá dentro. No mesmo instante os meninos saíram correndo e em dois minutos já estavam de volta, com Antonio dizendo:
- Não há nada de anormal lá dentro, tudo como a gente deixou, a não ser aquela vela acesa em cima da mesinha. Foi você que acendeu ela agora?
E Lucas não acreditou no que ouviu. Ficou em silêncio e só não desabou no chão porque os meninos, percebendo que não estava se sentindo bem, correram para lhe segurar. Só reabriu os olhos já perto do entardecer, deitado na cama de sua casa, e sendo atendido por uma futura médica: Ester.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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