SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 12 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 74

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 74

Rangel Alves da Costa*


Os meninos não queriam sumir dali de uma hora para outra. Isso de jeito nenhum; não tinha como. Não iriam abandonar de repente uma obra que também tinha as mãos e os sonhos de cada um. Pudesse chover canivete, soprar vento de fogo, a lua cair e o sol sumir, mas de um jeito ou de outro sempre estariam por ali.
Ademais, precisavam continuar ajudando, sentiam isso. Lucas sozinho, por mais esforço que fizesse, não suportaria levar adiante tudo o que já vinha sendo feito. E para falar a verdade, muitos já atuavam ali como orientadores de uma coisa ou de outra, já vinham atuando em determinadas situações, já tinham outros adolescentes, adultos e até idosos para orientar.
Se desaparecessem de uma hora para outra tudo deixaria de ser e de existir. E os novos planos, os projetos surgidos, as intenções e os encaminhamentos, como ficariam? E mais uma vez Lucas precisou dizer que caberia à astúcia e à inteligência de cada um encontrar meios para aparecerem e desaparecerem sem ser notados pelos olhos invisíveis.
E já que estavam quase todos ali, resolveram fazer uma faxina geral, arrumar tudo no barracão, limpar a praça da cruz e os arredores e até deixar a casa de Lucas sem uma poeira sequer. Assim que terminaram os afazeres se despediram do amigo e disseram para não se preocupar, pois jamais ficaria sozinho, que sempre estaria alguém por perto para ajudar no que fosse necessário.
Os meninos voltaram para suas casas já querendo anoitecer, porém a escuridão aumentava mais rapidamente porque uma verdadeira tempestade havia se formado mais adiante e caminhava veloz e furiosa. Os ventos sopravam fortes, uivos se ouviam pelas matarias com os galhos e folhas sendo açoitados; os bichos berravam, gritavam, se comunicavam nas suas vozes procurando se proteger; nem lua nem nenhuma estrela no céu, apenas uma esteira negra e pesada estendida de horizonte a horizonte; eram as águas acumuladas que começavam a se desprender acompanhadas de relâmpagos e trovões.
E a chuva começou a desabar de vez; e era chuva pesada, de pingo gordo, fazendo despencar os galhos mais frágeis e as folhas já mortas na estação. Ouvir aquela chuvarada caindo em uníssono era como escutar uma orquestra entoando melodias de morte e de vida. Casa se lava, chão se lava, roupa se lava, corpo se lava, tudo se lava, e a terra precisava também se lavar, fazer escorrer por entre seus caminhos tantos passos de espinhos e de sangue sem precisar ter sangrado.
E lavar a terra para a enxurrada levar para longe os troncos podres da miséria e da precisão; as folhagens mortas dos sonhos desfeitos e daquilo que não foi permitido; as ervas daninhas das injustiças e perseguições; o mato imprestável da covardia e da traição; o fétido estrume nos currais dos bichos que falam e matam; os areais atormentadores dos passos da paz.
E quanto mais chuva cair mais esperança e renascimento, mais água lavando tudo e chamando os homens para o banho. Tem gente que não se lava não. Tem o corpo tão marcado pela sujeira do espírito e do mundo que água não lava não. Mais tarde só chama ardente para derreter do mal a semente.
Quando começa a chover forte parece que tudo muda. Se tiver relâmpago e trovão, então é um deus-nos-acuda. É o temor das coisas de Deus, é o respeito do homem do mato, do matuto, daquele que ainda se preocupa em reverenciar o divino e o sagrado. Chuva é sagrada, é divina, é providência que se deve alegrar, mas também temer. Quantas vezes a chuva já destruiu, já encheu tanto que barragem transbordou e levou tudo que tinha pela frente, quanto riachinho desapareceu depois que choveu demais pelas cabeceiras, quantos bichos não são levados nas correntezas?
Chuva é assim, é bom e é ruim. Quando o gado está fraco, a primeira coisa que faz é se arriar quando chove; se prostra, se enlameia todo e dali não se levanta mais. Casa sem segurança por cima e por baixo também corre o risco de ir embora. Chuva de vento gosta de destelhar, de destruir curral e balançar roseira. Mas se não fosse a chuva não tinha vida não. Vida medrosa, vida chuvosa, mas vida.
Isso tudo passeando pela cabeça de Lucas como num filme. E era uma verdadeira viagem esse momento meio entristecido onde a chuva que cai lá fora tem o dom de despertar tantos sentimentos, recordações e saudades. Se sua mãe estivesse ali já tinha colocado pano por cima de tudo que tivesse vidro ou espelho. Era para não chamar relâmpago, diria. Seu pai certamente que já tinha colocado os bichos em proteção e agora estaria fumando um cigarrinho de palha enquanto olhava o tempo lá fora. Não durava muito e sua mãe já estava gritando: "Mas homem, você tá doido ficar aí nesse relampejar. Lembra do finado Chico que foi dessa pra melhor só porque estava com um espelho no bolso?".
Coisas, coisas e coisas. Mas é assim mesmo, pois quando chove tudo muda e desanuvia, parece que o mundo muda. E muda mesmo. Se não fosse tanto vento, trovões e relâmpagos, ele iria pra frente de casa tomar banho de chuva. Fazia sempre isso quando era molecote e era bom demais. Gripe não pegava em criança e a água nova ajudava no crescimento e limpava tudo. Mas agora os tempos eram outros. Tempos duros e difíceis, de trovões, raios e tempestades mesmo em pleno sol, no meio da rua, em casa, em todo lugar.
Mas Lucas foi tomar banho assim mesmo. Estava com vontade e tinha coragem, e basta isso para que tudo seja suportado e superado. Quem sabe as águas novas fortaleceriam seu espírito e recobriam seu corpo de força nova. E lá estava ele, feito criança, girando de braços abertos como se cantasse para uma platéia de anjos molhados.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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