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domingo, 29 de agosto de 2010

POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima primeira viagem)

POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima primeira viagem)

Rangel Alves da Costa*


Há cerca de vinte anos atrás muitos latifúndios se estendiam pelas terras poço-redondenses. Imensas fazendas, poucos proprietários, e somente algumas se encontravam no conceito que se dá atualmente a terras produtivas. A Lei n.º 8.629/93 (Lei da Reforma Agrária), em seu artigo 6º, estabelece que se considera “terra produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”.
Os proprietários das grandes fazendas geralmente eram pessoas de fora, de outras cidades e outros estados. Na sua maioria políticos e empresários, chegavam ao sertão com suas malas cheias de dinheiro e iam adquirindo cinco, seis ou mais pequenas propriedades vizinhas e de repente já estavam formados mais alguns latifúndios.
Improdutivos porque adquiriam as terras muito mais como investimento do que propriamente para criar rebanhos, empreender grandes cultivos ou desenvolver projetos agropecuários. Apenas alguns desses proprietários, geralmente moradores nos arredores da região se preocupavam em dar uma finalidade mais lucrativa e imediata às suas terras.
Assim, ao lado dos latifúndios sem serventia, improdutivos no conceito governamental, existiam aqueles onde existiam muitos rebanhos nas suas pastagens, plantações de palma, capim, milho, feijão e outros cultivos. Nestes, a sede da fazenda ficava fechada durante a semana e só abria suas portas quando o proprietário e seus familiares iam descansar. Quem tomava conta de tudo era o vaqueiro, o gerente, o morador, sempre auxiliado por outras pessoas.
Ao redor da casa grande ficavam as residências dos moradores, muitas vezes muito pobres diante daquela vastidão de terras e riquezas. Pessoas simples, humildes, às quatro da manhã já estavam prontas para o batente. Por sua vez, muitos eram outros latifúndios onde os proprietários dificilmente apareciam, deixando toda a responsabilidade no gerenciamento do lugar nas mãos de pessoas da região e de sua inteira confiança. Quer dizer, a propriedade era tida quase como coisa de menor importância.
Esta era a feição existente nos latifúndios, produtivos ou improdutivos. Contudo, não se deve esquecer que as terras poço-redondenses, até pelas vastidões que possuem, acolhiam e ainda acolhem inúmeras propriedades de médio e pequeno porte. Consideradas como de médio porte são aquelas onde o proprietário, residente ou não no próprio terreno, cria vacas, bois, cavalos e outros animais.
Quando possui rebanho leiteiro e as estiagens permitem, sobrevivem do que o gado produz, bem como das colheitas do milho e do feijão e, em muito menor quantidade, do algodão, da melancia e da abóbora. A sede da fazenda está lá, muitas vezes iluminada, ao lado do curral, de mais uma ou duas residências e de muita esperança para que a seca prometida para aquele ano não venha tão impiedosa.
Contudo, o aspecto mais marcante e mais bonito de se ver são as pequenas propriedades que, se ainda não engolidas pelo latifúndio ao lado, representam a cara e o coração do sertão. Os próprios sertanejos denominam essas propriedades de "meu terreno", "meu cercado", "meu sítio", "minha chácara", "meu pedacinho de terra".
Representam a maior riqueza da pobreza, o alento de ainda poder dizer que tem onde colocar o reduzido ou nenhum rebanho, onde crie solto seu cavalo, jumento ou jegue; onde se esforce para alimentar um ou dois porcos, algumas galinhas ciscadeiras, o velho e bom cachorro. Cabrito e bode às vezes têm, mas é difícil. O que não pode faltar é a casa de construção simples, levantada na ripa e no barro, ou a pequena moradia de alvenaria. É bom quando tem um pequeno telheiro, uma pequena área para estender uma rede ou assentar o velho banco de madeira.
Assim, ao passar pelos caminhos de Poço Redondo e avistar a casinha, o barraquinho ao lado para guardar a colheita, a sela, o gibão, os arreios, as sementes de milho e feijão engarrafadas, um monte de trelhas e pedaços de vida, ali estará a autêntica residência sertaneja. E lá dentro, no interior da casinha, meu Deus, não dá nem pra dizer como é. Entre lá e procure prosear com Maria e João.
Eles são tímidos, começam a falar de cabeça baixa, envergonhados, como se as palavras fossem riquezas que tivessem que dividir com o estranho, mas depois tudo desanda e todos estarão sorrindo, até mesmo quando falarem sobre as dificuldades que passam. Aceite a xícara de café feito na hora, aceite também a amizade sincera. Ofereça um biscoito ao Zequinha e Lurdinha. Talvez eles só tenham isso para comer nesse dia.
Entretanto, a realidade dos grandes latifúndios nas terras de Poço Redondo aos poucos foi cedendo lugar a uma outra e muito diferente realidade. E isto começou a ocorrer há cerca de uns vinte anos atrás, assim que os movimentos sociais e a igreja católica começaram a se organizar reivindicando as terras improdutivas para serem destinadas àqueles que precisavam nela trabalhar para sobreviver. Assim, como já vinha ocorrendo no sul e em outras regiões do país, o destino agrário do município começou a ser totalmente transformado.
A primeira e mais importante luta dos trabalhadores, no contexto do município de Poço Redondo, para ter a posse da terra improdutiva e torná-la importante meio de sobrevivência e subsistência, ocorreu na fazenda Barra da Onça, um imenso e improdutivo latifúndio de propriedade de Antonio Leite de Souza, mais conhecido como Toinho Leite, um riquíssimo proprietário de terras da região de Ribeirópolis.
A Barra da Onça era quase um nada diante do que possuía Toinho Leite. Rico demais, nunca produziu na sua propriedade de Poço Redondo e nem adotava um regime de parceria, onde trabalhadores sem terra pudesse produzir ali e garantir seu sustento. Tudo era quase totalmente mato, cobra e cobiça. Um com tanto e tantos outros sem nada, como costumavam dizer na região. Até que um dia tiveram a ideia de invadir aquelas terras e, após muitas e intensas lutas, os persitentes trabalhadores conseguiram ver seus direitos reconhecidos pelo governo federal, através do Incra.
Organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, em setembro de 1985 dezenas de famílias ocuparam as terras da Barra da Onça. Essa ocupação teve ainda o apoio da Pastoral da Terra e sindicatos. Contudo, não foi pacífica tal ocupação, como lembra o professor Eliano Sérgio ("Um Balanço da luta pela terra em Sergipe: 1985-2005"):
"Nesse ano, ocupantes da fazenda Barra da Onça, no município de Poço Redondo, foram expulsos violentamente da terra por mais de uma vez, tiveram seus barracos derrubados e suas principais lideranças (Guido e Rubens) foram presas e torturadas pela polícia do município de Nossa Senhora da Glória, para onde foram levadas" (http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/eliano.pdf).
Vencendo todas as dificuldades, atualmente a Barra da Onça é exemplo de assentamento que deu certo em todos os sentidos, constituindo-se atualmente num importante núcleo de beneficiamento de leite, com laticínios instalados e sensível melhoria de vida para as classes trabalhadoras. Dessa primeira luta vitoriosa, muitas outras passaram a ser empreendidas pelo MST em Poço Redondo.
As lutas dos trabalhadores, entretanto, sempre foram marcadas pela resistência tanto dos latifundiários, como pela polícia e pela justiça. Os conflitos sempre foram muitos e intensos. Analisando tais aspectos perante a região onde se localiza Poço Redondo, assim sintetiza o professor Eliano Sérgio no texto já referido:
"Em agosto de 2005, contabilizavam-se 130 conflitos/acampamentos (...). A maioria dos conflitos estava localizada na região semi-árida, justamente numa região onde há problemas climáticos (secas periódicas), terras com baixa fertilidade natural, muito distante dos principais mercados, dotadas de infra-estrutura física e de serviços precárias, entre outros. Na minha opinião, a região menos indicada para se priorizar as ocupações, com o que parece não concordar o MST, pois, de 1995 para cá, o semi-árido tem sido o locus por excelência de sua atuação.
No período 1995/1999, 37% das ocupações feitas em Sergipe estavam concentrados em 6 municípios do semi-árido, sendo Poço Redondo e Canindé do São Francisco os que apresentavam o maior número dos conflitos sociais agrários, com cinco ocupações cada. Essa porcentagem subiu para 40,8%, em agosto de 2005, tendo os municípios de Poço Redondo, com 21 conflitos, Canindé do São Francisco, com 12, Nossa Senhora da Glória, com nove, e Monte Alegre de Sergipe, com sete, como os principais concentradores das áreas de conflitos.
Por outro lado, o número de trabalhadores rurais que se encontravam acampados em agosto de 2005, da ordem de 10.323 famílias, representava quase o dobro das 6.329 famílias assentadas pelo INCRA em Sergipe, nos últimos 20 anos".
Verdade é que o município de Poço Redondo concentra o maior número de famílias assentadas e o maior número de pessoas oriundas das ocupações empreendidas pelo MST. A título de exemplificação, até 2001 o município contava com 18 propriedades desapropriadas para fins de reforma agrária. No que diz respeito ao total de hectares desapropriados e número de famílias assentadas, nesse mesmo período, era de 28.216 hectares e 1.571 famílias. Hoje, em 2010, tais números estão muito acrescidos.
Por todos os recantos do município, beirando as estradas, o que mais se vê são acampamentos do MST. Quanto mais as terras são próximas do São Francisco mais despertam interesse. Como sintetizou bem um dos líderes do Movimento no município, "o que não falta é acampamento do MST e outras organizações dissidentes à beira das estradas nas vizinhanças, destino de muitos rapazes por ali. O sonho da lona faz sentido. As famílias que foram assentadas nos últimos dez anos em áreas próximas ao rio São Francisco, que banha a região, são consideradas "ricas" diante da paisagem dominada pela pobreza absoluta".
Convém destacar que as lideranças do MST em Poço Redondo, designadas pela coordenação nacional ou formadas pelos próprios jovens das comunidades assentadas, muitas vezes não se contentam em restringir suas atuações apenas no contexto da luta pela terra e no asseguramento dos direitos dos assentados, enveredando também no mundo político-partidário. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Roberto Araújo, um dos coordenadores do movimento na região, que já foi candidato a vereador e a prefeito, sendo atualmente o vice-prefeito, eleito juntamente com Frei Enoque.
Verdade é que nesse passo e compasso, os movimentos sociais de luta pela terra conseguiram transformar a realidade agrária no município. Atualmente não existem mais latifúndios improdutivos, pois todos já foram ocupados pelos trabalhadores rurais sem terra. Os que se dizem produtivos, continuam em longas batalhas judiciais para terem seus direitos de manutenção reconhecidos. Até mesmo médias propriedades tornaram-se alvo do MST, o que torna a propriedade de qualquer fazenda algo temeroso e inseguro.
Diante desse quadro, muitos proprietários, antes mesmo de encontrarem suas terras invadidas ao amanhecer do dia, procuram o Incra em busca de uma rentável negociação para que haja desapropriação. Como o processo é lento e cheio de trâmites burocráticos, muitos donos são expulsos de suas terras e ficam aguardando anos a fio pelo recebimento das indenizações, sempre pagas segundo os contestados valores reconhecidos pelo Incra. Não é demais afirmar que muitos morrem sem receber um tostão.
De qualquer modo, as ocupações continuam em Poço Redondo e os assentamentos se espalham pelos quatro cantos. Eis alguns desses assentamentos: Barra da Onça, Queimada Grande, Lagoa das Areias, Pioneira, Guia, São Luiz, Cajueiro, Jacaré-Curituba e Pedrinhas, dentre muitos outros.
Os assentamentos recebem, dentre outras entidades, assessoria do Centro Dom José Brandão de Castro, que tem tido uma atuação importante, seja no processo de mobilização e organização dos camponeses e sem-terra, seja como mediadores entre eles e o Estado.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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