SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 13 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 75

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 75

Rangel Alves da Costa*


Os trovões e os relâmpagos logo começaram a rarear, ribombando e faiscando apenas uma vez ou outra. Contudo, a intensidade da chuva pouco diminuiu, mantendo-se numa constância que apenas parecia mais forte quando os ventos ajudavam os pingos a mudar de direção. E assim, entrou nessa noite e varou a madrugando, com a natureza toda encharcada e se alimentando. Na manhã a chuva ainda continuava e assim permaneceu por mais dois dias e duas noites.
Ainda pela madrugada da primeira noite de chuva, Lucas quase não consegue adormecer. Gostava de deitar e ficar ouvindo a chuva cair no telhado e imaginá-la lavando tudo adiante e ao longe. Sentia uma sensação de melancolia boa, quando o ciclo da natureza entristecia um pouco a paisagem para depois transformá-la em moça bonita, sorridente e feliz. Mas naquela noite, desde que sentou no sofá, já começou a sentir seu corpo em ligeira transformação.
Primeiro veio um frio diferente que estremecia o corpo inteiro, depois um apertar e um ardor nos olhos que mais parecia chama de labareda. Colocou manteiga da terra sob o cuscuz quentinho, estalou ovos e juntou um pedaço de carne assada, tudo bonito aos olhos, porém nada do apetite chegar. Deixou tudo em cima da mesa, cobriu com uma toalha e depois comeria o que pudesse quando a fome chegasse. Preferia uma xícara de café quentinho por enquanto, mas até o cheirinho bom subindo pelo ar chegava diferente ao seu nariz. Experimentou apenas dois goles e parecia que café o amargava na sua boca. Colocou a xícara numa mesinha e se enrolou sentado no sofá com a bíblia na mão.
Os olhos não queriam atender, não ajudavam na leitura, mas tinha que ler qualquer passagem bíblica. Tinha isso como costume e como dever espiritual consigo mesmo e com sua mãe, que sempre obrigava que o filho primeiro lesse a bíblia e depois rezasse antes de dormir. Mas estava difícil naquela noite. Os olhos, de tão ardentes, pareciam queimar as letras espalhados nos evangelhos.
"Então, com grande confiança, o justo se levantará em face dos que o perseguiram e zombaram dos seus males aqui embaixo. Diante de sua vista serão presos de grande temor e tomados de assombro ao vê-lo salvo contra sua expectativa; tocados de arrependimento, dirão entre si, e, gemendo na angústia de sua alma, dirão: Ei-lo, aquele de quem outrora escarnecemos, e a quem loucamente cobrimos de insultos! Considerávamos sua vida como uma loucura, e sua morte como uma vergonha. Como, pois, é ele do número dos filhos de Deus, e como está seu lugar entre os santos? Portanto, nós nos desgarramos para longe da verdade: a luz da justiça não brilhou para nós e o sol não se levantou sobre nós! Nós nos manchamos nas sendas da iniqüidade e da perdição, erramos pelos desertos sem caminhos e não conhecemos o caminho do Senhor! O que ganhamos com nosso orgulho, e que nos trouxe a riqueza unida à arrogância? Tudo isso desapareceu como sombra, como notícia que passa; como navio que fende a água agitada, sem que se possa reencontrar o rasto de seu itinerário, nem a esteira de sua quilha nas ondas. Como a ave que, atravessando o ar em seu vôo, não deixa após si o traço de sua passagem, mas, ferindo o ar com suas penas, fende-o com a impetuosa força do bater de suas asas, atravessa-o e logo nem se nota indício de sua passagem; como quando uma flecha, que é lançada ao alvo, o ar que ela cortou volta imediatamente à sua posição de modo que não se pode distinguir sua trajetória, assim, também nós, apenas nascidos, cessamos de ser, e não podemos mostrar traço algum de virtude: é no mal que nossa vida se consumiu! Assim a esperança do ímpio é como a poeira levada pelo vento, e como uma leve espuma espalhada pela tempestade; ela se dissipa como o fumo ao vento, e passa como a lembrança do hóspede de um dia. Mas os justos viverão eternamente; sua recompensa está no Senhor, e o Altíssimo cuidará deles. Por isso receberão a régia coroa de glória, e o diadema da beleza da mão do Senhor, porque os cobrirá com sua direita, e os protegerá com seu braço. Por armadura tomará seu zelo cioso, e armará as criaturas para se vingar de seus inimigos. Tomará por couraça a justiça, e por capacete a integridade no julgamento. Ele se cobrirá com a santidade, como com um impenetrável escudo, afiará o gume de sua ira para lhe servir de espada, e o mundo se reunirá a ele na luta contra os insensatos. Os raios partirão como flechas bem dirigidas, e, como de um arco bem distendido, voarão das nuvens para o alvo; uma balista fará cair uma pesada saraiva de ira; a água do mar se levantará em turbilhão contra eles e os rios os arrastarão impetuosamente. O sopro do Todo-poderoso se insurgirá contra eles e os dispersará como um furacão; a iniqüidade fará de toda a terra um deserto, e a malícia derribará os tronos dos poderosos!"
O Livro da Sabedoria quase se expressa sozinho, porém marcou essa passagem para ler e analisar depois com mais cuidado, pois as palavras ali contidas retratavam uma situação que conhecia muito bem. Mas naquele instante não estava para pensar muito. Mesmo cheio de cobertas e cobertores, o frio lhe entrava pelo corpo como se estivesse num descampado, lá fora, na chuva, à mercê da noite e da ventania gelada.
Estava doente, sentia, só podia ser. A chegada inesperada da chuva, o ar quente subindo da terra para fazer a chuva cair, com seus primeiros vapores doentios, tudo aliado ao banho demorado à sorte do tempo, não provocou outra consequencia senão um corpo fraco e doentio. Mesmo sentindo-se congelado, passou a mão pelo rosto e viu que estava suando tanto de fazer molhar a mão.
Só teve forças para procurar um remédio e se jogar na cama. E sofrer...


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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