EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 86
Rangel Alves da Costa*
Se Padre Josefo havia sido acometido de morte natural, provocada por algum mal súbito, ou assassinado, Lucas não sabia responder. Bem que gostaria. Contudo, não sabe bem porque, mas tinha quase certeza que jamais viria a público um laudo contendo um diagnóstico correto, digno de ser acreditado, mesmo se tratando de uma pessoa de renome na sociedade e no mundo eclesiástico. Daí que mais tarde só iriam lembrar e dizer que o padre teve um ataque do coração enquanto estava sozinho na sacristia.
Ataques do coração são de muitos tipos, pensava Lucas. Ferir, injuriar, caluniar, difamar um homem de bem é um ataque ao coração que pode feri-lo de morte; querer forçadamente impor ideias, conceitos e atitudes a uma pessoa que conhece bem os caminhos por onde andar é também atacá-lo no seu coração, querer calar, amordaçar a todo custo, uma voz que tem ânsias de gritar, falar dos erros, nomear os erros e apontar tais erros, é também procurar destruir o seu coração. Tudo isso leve à morte. Mas o mal súbito maior é aquele covardemente planejado para que o outro vá minando suas forças até que um laudo qualquer venha dizer que o indivíduo infartou.
Lucas, ainda sentado no meio-fio da praça ao lado de Paulinho, passou a mão pela cabeça deste e disse:
- Você não está vendo quantas pessoas estão ali espantadas, demonstrando tristeza e comoção pela morte do nosso amigo, e algumas delas até chorando, se pudéssemos ver bem lá no íntimo constataríamos que algumas delas estão felizes por dentro, realizadas com o acontecimento. Como o nosso padre já vinha sendo perseguido por algumas autoridades e políticos de renome daqui, certamente que naquele meio estarão os bajuladores que vieram apenas constatar a extensão do mal para irem repassar detalhes do acontecido aos que mais se interessariam pelo ocorrido. Quero dizer com isso Paulinho que no meio das pessoas boas que são como trigais pelos campos, estão as pessoas ruins que são como as ervas daninhas. Aqueles que vão observar o fato e sua extensão para depois ir contar a quem adula são as ervas daninhas, por isso mesmo chegam ali e saem, vão até ali e voltam. Verdadeiramente, nenhum destes estará pensando nos olhos agora fechados, mas cheios de bondade, do nosso amigo. O que é a morte para estes, senão apenas um ato de deixar de viver?... Não, penso diferente, pois vejo a morte como um silêncio que começa a falar em cada lembrança.
Sentiu que Paulinho passava a mão pelos olhos para enxugar uma lágrima. "Ah! Por que agora esse tempo encoberto, essas nuvens negras, esse vento bravio, essa fúria, esse medo, essa tempestade, esse pavor e estes olhos que são as chuvas, que formam um rio, que formam um mar, que correm em oceanos, que vem diante do nosso mundo embaçado e, por não podermos enxergar a dor, somos levados pelas águas do destino da morte. Que a dor inunde, que a dor transborde de vez em mim, para que eu sinta somente o rio e não tenha que acompanhar o curso das águas...". Você também é poeta, Lucas? Escrevi um dia e guardei na memória, diria ele.
"Preciso ir até lá Paulinho, se quiser pode me acompanhar, mas você já fez a sua parte e não é bom que pessoas de sua idade se envolvam muito nesses casos". Mas Paulinho estava disposto a acompanhar o amigo. Assim que levantaram perceberam o carro do prefeito se aproximando e este com mais sorriso do que boca. "Lucas, não esqueça que teremos que conversar, mas agora só nos resta chorar nosso amigo". Disse o prefeito e depois seguiu. Podia-se ouvir gargalhadas dentro do carro que prosseguia lentamente.
"Por que o prefeito está tão alegre, Lucas?", perguntou Paulinho. "Certamente porque a infelicidade de uns possui o dom de deixar outras pessoas felizes. No caso dele, tenho certeza que aquela felicidade quer dizer muito mais do que nós imaginamos, do que possa imaginar nossa vã filosofia, como diria Shakespeare". Foi a resposta encontrada para o momento, mesmo sabendo que não estava respondendo como deveria, que não estava falando a verdade com relação a determinadas coisas.
Logo em seguida o pai de Ester passou pelos dois em um possante veículo, de óculos grandes e bem escuros, olhando atentamente para as pessoas que estavam diante da igreja. Mais adiante parou o veículo, desceu e, já sem óculos, veio em direção a Lucas e falou: "A Esterzinha enlouqueceu por sua culpa. Se você me apoiar para deputado tenho certeza que ela ficará curada e depois resolveremos o resto". "Depois conversaremos sobre isso. Talvez o senhor entenda que o momento não é o mais apropriado para fazer chantagens, não é mesmo?". Respondeu e se afastou, deixando o homem carrancudo.
Paulinho ficou do lado de fora, mas Lucas conseguiu entrar na igreja para se avistar com o seu amigo. Estava morto, sabia, mas teria que conversar algumas coisas com ele.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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