EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 90
Rangel Alves da Costa*
Tempos difíceis para Lucas. Aquelas duas mortes, cada uma sentida a seu modo, abalaram demais seu espírito. Seria muito difícil não poder contar mais com a amizade, as palavras e as lições do Padre Josefo. Estava entristecido também pelo que havia acontecido com Ester, que no seu pensamento merecia destino melhor. Muito jovem a mocinha e com um futuro talvez brilhante, não poderia ter se deixado levar pelas ambições mundanas. Mas a vida estava cheia desses exemplos cruéis.
Se ao menos pudesse continuar contando com a presença dos meninos ali, tudo seria amenizado, seria diferente, a dor e a angústia talvez fossem embora mais rapidamente. Mas não, era como se tudo aos pouco fosse sumindo ao seu redor, lhe abandonando completamente, tornando-o uma ilha cercado de flores do mal por todos os lados. Até quando essa situação continuaria, até quando suportaria ser tentado pelo abandono e pela solidão? Cristo suportou no deserto porque assim estava escrito. Mas ele, pobre mortal, até quando suportaria? Indagava-se Lucas.
Os tempos estavam realmente difíceis. Dia e noite se desdobrava em muitos afazeres. Num instante estava alfabetizando jovens e adultos; noutro já estava acompanhando as oficinas de trabalhos artesanais; mais tarde teria que ir atrás de instrutores disso ou daquilo; as obras do novo barracão também exigiam atenção. Mas ele estava praticamente sozinho. O dinheiro rareava e tudo estava na dependência da ajuda do seu cunhado, esposo de sua irmã Lúcia.
Eram poucas as pessoas que chegavam ali para ajudar nas tarefas. Compreendia tal situação até mesmo porque conhecia das limitações daquela gente. Muitas vezes, a boa vontade de alguns já superava muitas dificuldades e levantava os ânimos. Mas estava realmente difícil.
Não estava mais recebendo ajuda financeira de ninguém da cidade. Não aceitava um tostão sequer dos políticos e os comerciantes deixaram de colaborar. Já havia enviado mais de vinte projetos para entidades governamentais e instituições privadas, mas tudo ainda continuava em fase de análise técnica. Era uma burocracia que aos poucos parecia querer minar as esperanças.
No barracão, muitas eram as pessoas que perguntavam pelos meninos. A resposta era quase sempre uma só: "Os meninos precisam pensar neles primeiro, para depois poderem ajudar aqui quando tiverem tempo disponível. Pedi que se voltassem mais para os seus estudos, para ficarem mais com os seus pais e os seus livros. Também precisam brincar, aproveitar essa fase maravilhosa na vida. Mas com certeza logo logo eles estarão de volta, podem acreditar".
E só Deus sabe o quanto doía estar repetindo isso. As pessoas nem imaginavam os motivos de não poderem estar ali. Às vezes até que tinha vontade de dizer a verdade, de contar tudo àquelas pessoas que se mostravam tão preocupadas e saudosas deles, mas depois deixava pra lá, até mesmo porque sabia que o fato logo chegaria ao conhecimento do prefeito e este poderia querer penalizar quem já vivia continuamente na submissão, que eram os pais dos meninos.
O que as pessoas não sabiam e nem podiam ficar sabendo é que os meninos constantemente estavam por ali meio às escondidas, organizando as coisas nos bastidores. Mais fácil de encontrá-los era quando anoitecia, pois a cada dia um grupo se dirigia até o local para fazer a limpeza do barracão, da praça da cruz e dos arredores. Mas tudo era muito rápido, de modo que estranhos não percebessem aquelas visitas corriqueiras.
Mas os olhos da maldade já tinham visto, já tinham percebido as constantes movimentações, já haviam procurado o mandante para relatar o que os meninos continuavam fazendo. As consequencias só viriam depois.
Dias difíceis Lucas. Quando o sol começava a se por e um amarelado triste se formava por trás das nuvens, instantes estes em que os sentimentos parecem aflorar mais fortemente, fazia de tudo para não desesperar. Muitas vezes sentado num dos banquinhos da praça da cruz, quase sempre de bíblia na mão, olhava para o horizonte adiante e chorava o seu cálice de lágrima por dentro e bebia num só gole a sede de gritar bem alto e dizer que o sol se esconde, mas nunca vai embora, que o homem que não deixa ser conquistado nunca será vencido.
Mas os tempos eram difíceis para Lucas. A bíblia aberta em Isaías 27,10 não deixava mentir: "... porque a cidade forte é agora uma solidão, uma morada abandonada como o deserto. Aí vêm pastar os bois e aí pernoitam e comem os seus ramos".
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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