CONSERTA CORAÇÕES
Rangel Alves da Costa*
Estava lá escrito numa faixa já encardida, estendida um pouco acima da porta de entrada da casa humilde: Conserta Corações. Grafia correta, objetivo claro dos serviços ali prestados, só restava saber quem era esse profissional prestador de tão interessante e incomum ofício, pois não é fácil encontrar por aí que leve a vida consertando corações.
Seu Cardio, o consertador de corações, era de descendência oriental, homem já idoso e de baixa estatura, com uma calma e uma paciência que chegava a dar raiva quem estivesse lhe esperando. Perguntado como havia se iniciado naquela arte de remendar corações, sempre respondia que existem coisas que para a pessoa aprender bastava utilizar as ferramentas próprias de cada um, que eram o sentimento e a verdade.
Não dizia quantos clientes já havia atendido e nem quantos estavam tendo os corações reparados, mas afirmava que era em número bem maior do que os dedos dos pés e das mãos de toda uma família. Não tinha um valor certo a ser cobrado por cada conserto, afirmando apenas que a pessoa cuidada pagasse segundo o seu coração renovado mandasse e os objetivos do reparo alcançado.
Haveria de se indagar se o Seu Cardio praticava ilegalmente a medicina ou coisa parecida, vez que quem não conhecesse o seu ofício poderia dizer que abria corações, remendava ou desentupia veias, colocava marca-passos, reorganizava o bombeamento do sistema cardiovascular ou fazia algum procedimento para ele bater mais acelerado ou bem calmamente.
Nada disso. O ofício do homem consistia em ouvir a pessoa de coração aflito e pronto, logo procurava as feridas na alma para serem curadas. O coração em si apenas sentia os reflexos do tratamento, conserto ou reparo, mas em nenhum instante ao menos era auscultado. Segundo ele dizia sempre, o coração nada mais é do que a resposta dos sentimentos. Agindo nos sentimentos modificaria tudo o que quisesse no órgão da vida do corpo.
Ele não gostava de falar sobre os problemas que mais surgiam para resolver, pois achava antiético e fazia perder o encanto de todo o tratamento realizado. Contudo, com alguma persistência e diálogo descompromissado, sempre era possível obter dados surpreendentes desse senhor. Foi dessa insistência e algumas xícaras de chá que alguns corações surpreendentes puderam ser conhecidos.
Segundo ele, um dos problemas mais comuns era de coração despedaçado. Para ilustrar, dizia que coração despedaçado é aquele que está experimentando uma tristeza profunda, seja porque indeciso quanto à pessoa que quer acolher como amor, seja porque abandonado pela pessoa que amava, ou ainda porque a vida amorosa aos poucos vai deixando de ter qualquer significado. São sintomas comuns nas pessoas mais adultas e que gostam de provocar fortes emoções ao coração. E quando sentem qualquer abalo, logo se apavoram e dizem que já tinham experimentado de tudo e jamais tinha sofrido tanto.
Problema também costumeiro era de coração perdidamente apaixonado e não correspondido. Sintoma e síndrome de corações mais jovens, adolescentes, experimentando os primeiros vapores do amor, geralmente se apresentam com palpitações desconhecidas, pequenos apertos quando certos olhares se aproximam, fáceis demais de serem conquistados e certamente usados e abusados para em seguida ficarem abandonados. Corações jovens com tais problemas, ou se fortalece a raiz dos sentimentos ou não sobreviverão aos perigos da verdadeira paixão.
Muitos outros tipos de corações, sintomas, traumas e tramas foram relatados pelo abnegado senhor. Mas como não poderia deixar de ser, um dia foi indagado de onde havia tirado tanta sabedoria, se de alguma prática milenar oriental ou dos livros escritos por algum sábio. "Nada disso", respondeu ele. "Tudo o que sei aprendi com o meu próprio coração sofredor. De tão despedaçado que é meu coração, aprendi a viver remendando o dos outros. Amei demais e fui abandonado, quis demais e ainda vivo no abandono. Quer ensinamento maior, meu filho?".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Gostei Rangel desta bela criação em cronica de um problema que assola a humanidade, que são as decepções e desencantos, deixando um exercito de corações despedaçados,esfarrapados, humilhados. Sempre se soube e ou sabe, que muitas vezes o que cura é apenas um carinho, uma atenção, um abraço.Deveria exisitir muitos Dr.Cardio com esta filosofia, todos nós podemos ser um medico reparador. A alma esta gritando por medicos assim. Gostei muito mesmo,parabens Rangel.
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