EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 65
Rangel Alves da Costa*
Quanto mais se aproximavam da pequena propriedade familiar, mais Lúcia se enchia de saudades, alegrias e tristezas. Tudo ao mesmo tempo. Cada passo que dava era como se estivesse indo reencontrar com os velhos pais, cada um no seu afazer diário, indo limpar o pouco mobiliário da casa, varrer o piso e os arredores da morada, forrar as camas, colocar água e comida para os bichos, ligar o rádio e ouvir uma canção que falasse de amor. Tempos de sonhar ainda, eram aqueles. Agora somente passos, por este e outros caminhos e uma saudade imensa...
A jovem senhora ficou sem entender coisa alguma quando avistou o barracão. Ao sair dali, e não tinha muito tempo, nada daquilo existia. Foi preciso Lucas explicar tudinho, desde o começo, sobre a existência e os objetivos daquela construção, para encanto ainda maior da irmã.
- Que coisa maravilhosa Lucas. Nossos pais não entenderiam muito bem como isso funciona, mas certamente ficariam muito felizes e contentes quando encontrassem pessoas reunidas aqui, o padre celebrando missa, jovens e adultos tendo outros meios para serem alfabetizados, pessoas aprendendo ofícios e famílias reencontrando-se pelos arredores. Meu esposo, que tem um coração assim igual ao seu, sempre pensando mais nos outros do que em si próprio, certamente ficará muito admirado com a obra dos meninos. Digo meninos porque você não passará de um menino perto dessas pessoas tão jovens e já tão preocupadas com o presente e o futuro. Chamo isso de responsabilidade, e responsabilidade com a construção das coisas boas que ainda podem ser erguidas na vida. Parabéns, meu irmão. Depois que eu tomar um gole de água daquele pote, que é a água mais saborosa do mundo, iremos até lá ver de perto e por dentro esse verdadeiro templo divino.
Lucas fazia de tudo para não expor a emoção que tomava conta, para não mostrar à irmã os olhos insistindo em chover chuva de temporal. Contudo, ele tinha esquecido que ao sair havia deixado ali alguns meninos e seus parentes fazendo uma faxina na bagunça que restou do dia anterior. E de repente, a porta do barracão se abre e surgem Paulinho, Maria, Guiomar e Antonio, todos sujos da cabeça aos pés, com vassouras, panos e baldes nas mãos, espantados diante da presença daquela desconhecida.
- Venham cá, venham cá. Calma, não fiquem com vergonha por estarem assim porque esta pessoa aqui não é nenhuma desconhecida. Esta é minha irmã Lúcia, sobre quem eu já falei a vocês, lembram? – E começou a apresentá-los.
Lúcia ficou verdadeiramente encantada com aquelas figurinhas maravilhosas. E disse que desejava se reunir com todos no dia seguinte, ali mesmo no barracão, no horário que fosse melhor para eles. E assim os meninos voltaram para limpar ainda mais o barracão, como se ali ainda tivesse alguma coisa para ser cuidada. Na verdade, era o prazer imenso em serem reconhecidos naquilo que faziam.
Já na varanda da casa, antes mesmo da porta principal, Lúcia perguntou se o irmão estava fazendo alguma reforma, pois havia percebido uma porta nova. "Não, ainda não. Mudei as duas portas, a da frente e a dos fundos, porque já estavam muito velhas e sem dar mais segurança". Foi a única saída encontrada por ele, pois, por enquanto, não desejava falar sobre as ameaças e os atentados que vinha constantemente recebendo.
Como o prometido, Lúcia foi logo em direção ao velho pote, todo limpinho que parecia novo, e tomou com prazer uma caneca de água. Passou os olhos pela casa inteira, visitou o quarto dos pais, olhou as fotografias na parede, remexeu em coisas e baús e chorou muito. Nesses momentos ninguém pode conter tais lágrimas, pois são expressões tão verdadeiras que parecem vozes dizendo tudo o que sentem. E naquele instante o que Lúcia sentia era como se os seus pais estivessem ainda ali presentes, olhando para os dois e os abençoando uma vez mais. Talvez estivessem Lúcia, talvez estivessem Lucas...
Alguém poderia dizer que não, que seria impossível, mas o anjo do Senhor e todos os anjos que estavam ali também choravam. E em cada um a certeza de que se até eles, que são fortalecidos pelo sopro divino para suportar com firmeza todas as dificuldades, choravam e sentiam as fragilidades próprias dos seres humanos, quanto mais estes, que vivem saltando de pedra em pedra num rio imenso que é só de lágrimas.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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