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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

DILEMA DO POETA

DILEMA DO POETA

Rangel Alves da Costa*


Que poeta é um fingidor todo mundo sabe. Em "Autopsicografia" Fernando Pessoa não deixou dúvida quando a isso: O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente./ E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm./ E assim nas calhas de roda Gira,/ a entreter a razão,/ Esse comboio de corda Que se chama coração.
O fingimento do poeta, contudo, não é somente poético, naquilo que escreve com coração e alma, que tão sentimentalmente expressa. Também é um fingidor perante as expectativas daqueles que leem sua poesia. Para muitos, a poesia não reflete nem exemplifica situações da alma nem de qualquer coisa, mas simplesmente o poeta. Não existem palavras escritas, mas sim a voz do bardo em cada verso, em cada rima, em cada construção branca.
Ora, para o mero apreciador, para o leitor que não vê a poesia como uma produção literária, como um ofício sentimental, mas sim como algo escrito na folha molhada de lágrima, nascido da tristeza profunda do trovador ou na sua mão trêmula de saudade, o poeta tem que ser aquilo e como aquilo que escreve: triste, solitário, abandonado, que vive captando motivos na solidão da noite ou na luz do luar. O pior é que, de certa forma, o poeta não pode apagar de vez tais expectativas.
O poeta é um fingidor, mas não pode ser mentiroso. Ela inventa o coração, o despertar da paixão, o reencontro com a saudade, a vontade de querer, possuir, amar e ter, mas não pode, ele mesmo, estar ausente, distante daquilo que foi inventado. Como se poderia expressar a paixão de forma fria, demasiadamente branda, de modo que o leitor ávido pela ardência dos sentimentos se depare com um gelo em nome do amor? Ora, o leitor muitas vezes reconhece quando o poeta está ausente da poesia. E como o discípulo do Lácio estaria presente?
Todo mundo lê nas letras muito além da leitura; as palavras, quando sabem onde estão e para que servem, se movem, gesticulam, falam, gritam; a forma como as palavras se unem para expressar um sentido é a mesma forma como caminham para chegar ao entendimento do leitor; o que no começo não sabe onde quer chegar não pode dizer para que veio; palavras simplesmente jogadas no solo áspero dos olhos não frutificam nos sentimentos. É nesse contexto que se entende onde deverá estar o poeta.
A bem da verdade, o poeta está onde as palavras se incendeiam; onde há algazarra; sons, ruídos; onde há tremores e tempestades nos íntimos e interiores; onda há uma vela levemente flamejante na penumbra e olhos chorosos seguindo além; após a réstia da vidraça turva; no soluço e na palavra solitária chamando por alguém; no pulo, no grito de alegria e prazer; sentado nas sombras da árvore secular; deitada na relva com o livro nas mãos. O poeta está em cada um desses lugares ao seu modo. E deve estar em todos ao mesmo tempo.
Na história são raras as situações em que o poeta se confunde com o que escreve, vive o que escreve, é o reflexo da própria criação. Ninguém morre de amor, quanto menos quem apenas escreve sobre ele e muitas vezes nunca amou. Tinha de ser assim, pois não cabe ao homem do Lácio quebrar-se junto ao espelho que chora, suicidar na poesia que é de paixão mortal, viver na solidão e no abandono das suas palavras.
Ademais, o verdadeiro poeta, sempre digno de uma página na eternidade, é aquele que se comporta como um ambulante: vende o melhor que tem ao gosto do sofrer do cliente e depois vai vender os mesmos versos dizendo que é de alegria para outro cliente. Com a mesma estrofe, um chora e o outro sorri, enquanto o poeta finge que os dois têm razão.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

2 comentários:

Toninho disse...

Sim Rangel, conseguiu discorrer bem sobre a coisa de ser e estar na poesia.Sua ultima frase diz tudo:"Com a mesma estrofe, um chora e o outro sorri, enquanto o poeta finge que os dois têm razão."
Perfeito amigo.Um abraço.

Anônimo disse...

É Rangel,acho que tem razão,mas as vezes o que o poeta escreve é o que sente ,muitas vezes não tem coragem de abrir seu coração e vai nas escritas.Agora creio que algumas poesias do poeta no seu caso são de declaração mesmo.Um bj.