EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 69
Rangel Alves da Costa*
O conteúdo do bilhete deixado ali na porta como aviso de um amigo não foi algo totalmente novo para Lucas. Já tinha conhecimento de quem estava por trás daqueles ataques e ameaças há certo tempo. O que surgiu como novo foi o fato dele ser visto como uma ameaça ao poder político de mando e com feições ainda coronelistas na região. Tudo, menos isso, pois a política partidária era uma das coisas que mais enojava.
Quem já se viu, logo eu feito folha ao vento, em meio a esses vendavais todos que são rotineiramente provocados, servir de ameaça política para essas feras e tubarões que se apegaram e se agarram ao poder como pessoas doentes e enlouquecidas. Mas por outro lado, quem dera se realmente eu pudesse arrancar desse solo bom essas ervas daninhas que se alastraram e que, igual a doença ruim, vão destruindo todas as células boas de um corpo até definhá-lo completamente.
Quem dera se o povo acordasse e se reconhecendo como gente que ainda continua na escrevidão, passasse a escrever uma nova página nas suas vidas e celebrassem a derrota desses políticos safados como uma vitória para as gerações futuras, para os seus netos e bisnetos. Isso tudo dependia do povo e não dele. Pensava Lucas. Porém, o caminho da redenção do povo e do lugar, através do voto e da escolha política, certamente que não passaria por ele, que tinha planos muito mais simples e honestos para levar adiante.
Guardou o papel com a mensagem com cuidado e depois voltou para perto da árvore. Deixaria ali mesmo como estava no momento, derrubada feita gente morta. O tempo se encarregaria de secar suas folhas e quebrar seus galhos; o tronco ficaria ali como um marco de resistência até quando estivesse ali e pudesse resistir. Talvez aproveitasse a madeira do tronco e mandasse construir uma cruz bem grande e bonita para ser colocada no mesmo local onde a árvore estava.
Essa ideia prevaleceu, pois dois dias depois e uma bela cruz estava colocada logo acima de um pequeno pedestal de cimente. E ficou linda, maravilhosa, bonita de se ver. E mais bonita ainda porque ele mandou que construíssem também alguns bancos de cimento ao redor da cruz. Havia ficado perfeito, parecendo mais um pequeno templo de agradecimento por uma grande conquista. Quem diria, mas se o mandante da derrubada da árvore visse agora aquilo tudo e tivesse sentimentos e olhos para chorar, certamente se inundaria por sua ação abominável ter possibilitado o surgimento daquele monumento simples, porém original e carregado de uma significação ainda não compreendida para muitos.
O Padre Josefo se incumbiu de benzer a cruz; os meninos limpavam ao redor como se estivessem tirando sujeira dos seus próprios quartos. Estavam todos contentes, principalmente porque já sabiam que brevemente começariam as obras do novo barracão. Os jovens, adultos e os mais idosos que vinham para estudar no barracão, antes e depois das lições passavam ao redor da cruz, sentavam, ficavam de joelhos, oravam e faziam daquele ponto um verdadeiro local de devoção.
Um dia apareceu por lá um indivíduo procurando Lucas e dizendo que havia sido enviado por alguém que pediu para não ser identificado, no sentido de trabalhar ali como vigilante. Vigiando a pracinha da cruz, como já estava sendo chamada, daria segurança também ao barracão e à casa dele. Chegaria no local às seis horas da noite e só sairia de lá às seis do dia seguinte. Perguntou a Lucas se aceitava e este disse que só aceitaria se ao menos soubesse quem havia contratado ele, quais os objetivos com aquela preocupação e quem era o rapaz, se era dali mesmo e de qual família.
Ele se identificou, contou sua situação de pobreza ali mesmo nos arredores da cidade, disse dos quatro filhos que já tinha mesmo sendo ainda jovem e implorou para que ele lhe desse a oportunidade de trabalhar num local tão abençoado. Contudo, o nome da pessoa que o havia procurado e faria o pagamento mensalmente não poderia dizer de jeito nenhum, pois o homem havia lhe pedido por tudo para não ser identificado. O contratante não disse os motivos nem o rapaz perguntou.
Nessas condições, mesmo sentindo a seriedade do rapaz, Lucas disse que não poderia aceitá-lo trabalhando ali de forma alguma. Também não disse os motivos e nem deu outras explicações, apenas acentuou que se ele pensasse em dizer quem o havia enviado até ali, bem que poderia rever a situação e permitir que trabalhasse. Após isso, de cabeça baixa, o rapaz se despediu com água nos olhos, deu as costas e seguiu de volta.
Lucas se comovia por dentro, se doía em todos os sentimentos, mas a verdade é que não podia aceitar ali um vigilante que não sabia quem havia mandado e pagaria pelo trabalho. Diante da situação apresentada nos últimos tempos, seria até mesmo burrice sua se abrisse guarda para o desconhecido. Quando olhou adiante, para ver se o rapaz já ia longe, eis que o mesmo já estava bem próximo de si, há cerca de cinco metros do banco onde estava sentado. Tomou um susto, mas o rapaz pediu calma e se aproximou:
- Se o senhor jurar que não diz pra mais ninguém, eu digo quem vai pagar para eu ser vigia daqui...
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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