EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 66
Rangel Alves da Costa*
A casa humilde onde nascemos e crescemos é a mesma manjedoura aonde o filho dos tempos veio confirmar sua eternidade perante todos, ricos e pobres, descendentes dos mais dignos sangues da humildade ou das linhagens mais nobres, pois dela qualquer ser humano, igualmente, surge para o mundo com a mesma qualidade de filho de Deus. As diferenças surgem depois, quando cada um passa a saber o destino que dá aos presentes recebidos dos reis magos que primeiro lhe viu chorar. Nossos pais sempre merecem que cuidemos bem dos presentes que nos concederam com a vida. Mais tarde disse Lucas à irmã.
Refeita das emoções iniciais, Lúcia começou a se sentir como jamais houvesse tirado os pés dali um só instante. Descalça, jogada numa poltrona, tomou um aspecto mais sério quando começou a expor outros motivos daquela visita:
- Estou aqui principalmente para resolvermos logo esse problema da herança, que na verdade não é nem um problema, apenas um modo de passar logo tudo para o seu nome. Nossos pais morreram e por mais que queiramos preservar as coisas no estado que estão, a lei nos obriga a obriga a abrir inventário e fazer a partilha dos bens. Tenho pra mim que esse procedimento todo só tem lugar quando há herdeiros muito mais interessados em bens do que na história familiar, que verdadeiramente não é o nosso caso. Contudo, para tudo ser muito mais rápido e simplificado, já que somos maiores e sabemos muito bem o que temos, até mesmo contar a dedo o que nossos pais nos deixaram, basta que procuremos o cartório para resolver tudo. E, como você já sabe, aquilo que eu teria direito entrego a você de bom coração, para que daqui por diante isto aqui seja seu e possa dispor mais tarde como pretender. Pelo seu senso humanitário, demonstrado que está logo ali naquele barracão, e pela sua luta incansável em progredir, sei muito bem que fará a melhor destinação de tudo. Quem fala isso não é uma estranha não, mas uma irmã que lhe conhece muito bem... – Quando foi interrompida por Lucas:
- Sabes muito bem que mesmo em meu nome, tudo isso aqui será também sempre seu. Ademais, Lúcia, do modo que você fala é como se nós, de repente, não fôssemos nos ver mais ou coisa parecida... – E foi a vez da irmã interromper:
- É até bom que você diga isso, pois de qualquer modo tenho que lhe dizer também umas coisas que andam me preocupando muito...
- Mas ora, já deveria ter falado. O que está havendo? – E se aproximou mais da irmã.
-Tem gente que não acredita, que nem liga para essas coisas, mas ultimamente eu tenho sonhado muito com os nossos pais. Juro a você que parece muito mais que sonhos, pois é como se eles, cada um por sua vez, estivessem realmente na minha presença, ali ao lado da cama, para me dizer que olhe mais por você porque sua vida está cercada de grandes perigos, com pessoas lhe perseguindo e querendo destruir os seus passos e suas realizações. Chegaram até a dizer, chorando, que na sua idade jamais queriam que você fosse para onde eles estão, que é um lugar divinamente bom, porém somente para as pessoas que são chamadas na hora certa. Está me entendendo? Assim, Lucas, temem que nesses perigos que corre você se torne uma vítima inocente. Por outro lado, sabem também que você está muito bem protegido por forças divinas muito poderosas. Contudo, na terra onde estamos o que está visível é perigoso demais para que o invisível impeça de praticar o mal. Até porque o mal sempre vai existir para confrontar o bem. Por isso aquele pode vencer por instantes, mesmo sabendo que a vitória é passageira e se transformará logo em derrota ainda maior para o mal. O problema é saber até onde o ser humano suporta estar nesse campo de batalha, nessa guerra entre o bem e o mal. Está me entendendo, Lucas?
- Muito bem minha irmã, mas só quero dizer uma coisa com relação a isso. Gostaria que os nossos pais viessem ao menos em sonhos falar comigo dessa maneira como você está dizendo, pois fico muito sentido em você ter que suportar ser porta-voz dessa história toda. Mas talvez eles não cheguem até mim desse jeito porque tudo isso tem muito fundamento e não deixa de ser verdade as preocupações. Por isso mesmo vou relatar calmamente o que vem ocorrendo comigo ultimamente...
E contou em detalhes as perseguições, as propostas indecentes do prefeito, as ameaças, os atos violentos cometidos contra a casa e o barracão, mas também sobre as aparições do anjo e a presença desses seres de luz sempre ao seu lado.
Durante todo o relato a irmã mostrou-se profundamente entristecida e por diversas vezes lágrimas rolaram sobre o seu semblante. No seu íntimo, aumentava cada vez mais o amor pelo irmão, sentimento tão verdadeiro esse que a fez pronunciar:
- Por que não vende tudo e vai embora daqui?
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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