SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 1 de agosto de 2010

TIQUIM DE PROSA (Crônica)

TIQUIM DE PROSA

Rangel Alves da Costa*


Tarde dessa, tava eu na malhada do terreno, debaixo do pé de umbuzeiro, estendido numa rede de descansar sonhador, como faço todo entardecer, quando o trabalhar permite e o tempo ajuda, depois que os ofícios estão encaminhados e a vida autoriza que o homem ainda tenha momentos só dele.
Se for no tempo certo, chega até cair umbu madurinho por cima do corpo estendido, e por isso mesmo é sempre bom ter uma garrafinha daquela branquinha do engenho por perto, bem embaixo da rede, cobrindo o formigueiro danado de atrevido. Nunca passa de dois ou três golinhos, mesmo que se vá juntando uma cesta de umbus madurinhos e docinhos.
Os bichos também gostam de umbu de vez, e na fome juntada ao faro apurado se acercam também do umbuzeiro e fazem a festa. E chega boi e chega vaca, passarinho dá por cima e por todo lado, até cobra aparece de vez em quando. Se der uma pinguinha a eles, também bebem de lamber os beiços, com certeza. É uma festa a vida, todas as vezes que seres é dado o direito de festejar.
Inté parece coisa de preguiçoso, mas garanto, seu moço, que não é não. Só Deus sabe o que é levantar ainda com o dia quase que enluarado, ralar as espigas de milho pra fazer o cuscuz, acender fogo pra coar café quentinho, depois ir até o curral pra tirar leite das três vaquinhas, colocar no vasilhame e ir pra beira da estrada esperar que o carro do leite passe e pague dois tostões. O que mais dói é saber que depois, se a gente quiser comprar um pedaço de queijo tem que pagar os olhos da cara. Mas isso é só uma parte do serviço, seu moço.
Mais tarde, ainda bem cedinho de alvorada, depois de comer um pedaço de cuscuz com tripa de porco – gosto mais de toucinho com ovos, quando tem -, vou soltar o gado, ajeitar uma coisa e outra, dar uma volta pelo roçado, limpar os matos que crescem demais e empatam que os pés de feijão e de milho vão crescendo como devem.
Tem planta rasteira de roça que se o cabra não tá arrancando ela todo dia, de repente ela já tomou a plantação todinha, botando a perder toda a lavoura que se deseja ter. Compadre meu descuidou três dias, e no quarto chega já tava tudo forrado, bonita, parecendo um lençol verdejante, só que de erva daninha, mata-pasto e tiririca. Depois, por baixo, só dá bicho ruim e cobra.
Quando o sol se levanta de vez já subo no jumento e vou pra onde me chamaram pra trabalhar naquele dia. Tem vez que é amigo tão pobre quanto eu que está na precisão. Quando é assim, a pessoa vai até lá plantar, colher, levantar uma cerca ou derrubar pé de pau só pra ajudar mesmo. Mais tarde a gente também precisa e o que não falta é amigo pra essas coisas.
Noutras vezes, e aí a gente vai por precisão mesmo, o trabalho é duro de lascar, arrebentando com o homem, tirando sua dignidade, que é ficar o dia inteirinho fazendo de um tudo na terra do ricaço em troca de quase nada. Mas não se pode fugir disso. Tem menino pra cuidar e menino chora com fome. Se gente grande tem barriga que ronca, menino tem boca que se abre num lamento só e pronto. E o pai tá ferrado. Quem mandou fazer o cabritinho? Agora tem que dar de comer.
Então, seu moço, deitar aqui nessa redinha não é luxo nem preguiça não. É difícil que sobre tempo, mas quando sobra não há coisa melhor, pois todo mundo também é filho de Deus. E quando tô aqui, ouvindo passarinho e bicho, me contento quando os amigos chegam pra um proseado ligeiro, rapidinho como a pressa do homem trabalhador.
É por isso mesmo que deixo sempre um banquinho de madeira bem ali, que é pra quando cada um chegar se assentar, tomar uma lapada, chupar um umbu, limpar o canto da boca e depois conversar conversa de qualquer prosa. Gosta das prosas deles, pois são muitos sabidos e sempre trazem novidades. Chegam a qualquer momento, assim, sem dá boa tarde nem avisar, mas gosto disso porque chegam sempre.
Já estou ouvindo o murmurejar de um que vem ali. Cabra bom é esse que vem ali. Chamam ele de vento, mas prefiro chamar de apressado. Me conta tudo, de longe, de lá longe. Não é fofoqueiro, é bem informado. Certa vez me disse que ouviu bem lá em cima, lá pra cima de uma nuvem, que um dia Deus vinha como um vento bem gelado pra arrepiar todo aquele que ele gostasse. Isso ele me disse um dia.
Estou esperando ele chegar. Mas não, só veio esse vento gelado demais, de arrepiar o corpo todo. Será o Deus, meu Deus? Que seja o bom Deus, meu Deus!...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertão.blogspot.com

Nenhum comentário: