DE CORTAR CORAÇÃO
Rangel Alves da Costa*
Cansado de ser de lá sem ir lá, dia desses resolvi ir pra lá. Seu moço, melhor nem ter ido, botado pé na estrada daquele mundo sofrido, partir sadio e voltar sofrido. Digo na mais pura verdade, se não fosse a raiz do sertão que me invade e essa coisa danada chamada saudade, nem pé nem olhar tinha ido, não tinha nesse passo partido, pra ir cheio de esperança e voltar derretido. Coração derrete seu moço, só de ver aquilo tudo, não gritar, ficar mudo, sem força pro absurdo.
Sertão, sertão mesmo não é mais não. Cadê o sertão tão sertão, aquele de sol vermelho e lua de clarão, com catingueira e jurema, umburana e aroeira, de mato rasteiro e bichos no seu festeiro, de chão sedento de água e caboclo cheio de mágoa, da tocaia na estrada e fogo na mulherada, da oração da beata e do açoite e da chibata, da casa de barro caindo e menino brincando e sorrindo, do araçá pela mata e do veneno que mata, da vassoura pela rua e da criança andando nua, da panela sem fundo e tanta gente sem mundo, do cabra valente e do vaqueiro dolente, das mulheres na calçada e gente sem fazer nada, da vela acesa pra fé e da esperança qualquer, do bicho que chora e da mão que implora, do sertão que não tem mais não?
Juro por Deus, meu senhor, que me vi cheio de dor. Pensei que aquela paisagem não passasse de miragem, que o matuto e seu encanto não se transformassem tanto, que a mudança existente não passasse de repente, que logo apareceria o sertão que eu queria. Mas não, tudo foi se confirmando em cada sertanejo avistando, em cada lugar olhando, em cada moita enxergando, em cada vereda entrando, e nada de aparecer o sertão e o seu viver.
Tudo mudou seu moço. Acredite no cristão que só diz por que pisou chão, estava lá pra contar, sem querer só foi sofrer. Matuto não existe mais, bicho do mato jamais; chapéu de couro sumiu, vergonha raivosa partiu, assim que viu homem decente da sua raiz sendo descrente. Vaquejada, aboio e toada, cavalo alazão na estrada, entardecer com filharada, tudo parece que morreu na história que entristeceu.
Pensei que não estava lá, que era outro lugar, menos o que fui procurar, o que cheguei pra visitar. Já pensou seu moço, ver matuto na balada, caipira na cocotada, valente de calça apertada, a cartucheira embonecada, cabra macho rebolando, usando brinco e sambando, com jeito manso e amansando? Quem já se viu seu menino, mulher valente quengando, com qualquer um safadando, menina nova enxerida, novinha e fazendo vida, já nessa idade e indecente, sem a ninguém ser mais temente, perdida desde a semente?
Pelo que vi e senti, o sertão não era ali, sai procurando o danado, olhando pra todo lado, mas sem encontrar sombreado. Não vi mandacaru, xiquexique, palma, cachaça de alambique; não vi preá escondido na moita, nenhuma caça afoita, nem jiboia nem teiú, nem carniça nem urubu; não vi o fogo-corredor, o lobisomem que é homem, o jegue avoador, o jumento relinchando, a cobra-d'água piando nem cabrito soletrando. E não vi nada porque nada mais existe, porque tudo é tão triste que a vida quase desiste.
Também não vi e ninguém viu não, semente enterrada no chão, pá, enxada e facão, foice, machado e arado, arame farpado no estrado. Cacimba nem água tem mais, carro-pipa nada traz, mas chuva ninguém quer não, nem quer o xote e o baião, forró e animação; ninguém quer mais o suado, o namorar luarado nem o namoro proseado, nem morrer de amor nem ficar apaixonado. Se tocar guitarra cada um se agarra, se joga pra lá, sacode pra cá, todo mundo dança sem saber dançar, e se for estrangeiro é que não vai mais parar.
Chamei um molecote e ele não veio não. O nome não é Zé nem Tião, é Maikschxhuell ou Ghistllião; não é mais Maria nem Pureza, é Mary ou Condolezza. A boneca de pano morreu, o game apareceu; inocência é coisa feia, indecência; agora a coerência é ter desonestidade, pois ninguém mais é sertão, se tudo aquilo é cidade. Valei-me Deus, que tristeza, que maldade! Fazei voltar, meu Senhor, aquele sertão da saudade!
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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