OS TAMANCOS DA SERPENTE
Rangel Alves da Costa*
Ninguém chega bem perto para ver, para ter certeza, e se contenta em ficar imaginando e falando bobagens que serpente não tem pés nem mãos, e por isso mesmo não pinta as unhas nem usa luvas e nem frequenta o pedicuro e nem calça sapatos.
Ledo engano de quem pensa assim, pois se é verdade que cobra não tem mãos - ao menos prefere morder a beliscar - não acontece o mesmo com as extremidades inferiores que assentam no solo, que são os pés. Estes ela tem e todo mundo sabe, só não fala pra ninguém dizer que está ficando louco.
A prova maior é que ninguém jamais viu uma cobra correndo, mas sempre ela andando pelos cantos e pelas moitas como quem não quer nada. A serpente tem pés e respeita tanto os que também tem que evita morder os pés dos outros. É uma questão de reconhecimento, de valorização. Só morde do calcanhar pra cima, e segundo consta calcanhar não é pé.
Mas o fato mais instigante, e podem me chamar de louco por isso, é que descobri que serpente também usa tamancos. Não gosta de sapatos nem de sapatilhas, mas de tamancos bem altos e com um salto que vai afinando até chegar quase como uma agulha ao chão. Não deixa marcas de suas pisadas por causa disso, porque a sustentação fininha pisa no chão e quase não move a areia nem deixa marcas. Mas faceira e egoísta que é, anda se rebolando e pisando com cuidado que mais parece que está rebolando. Daí os incautos acharem que ela vive se arrastando.
E por que sei de tudo isso, alguém haverá de perguntar. Ora, conheço uma pessoa cujas características são capazes de ensinar tudo sobre cobras e serpentes, répteis e ofídios, mordidas e venenos, rabos e chocalhos, vacinas e mortes, rebolados e traições, tamancos e rastros. Não digo o nome porque senão a vizinhança toda vai ficar sabendo que estou falando da Lucena.
Que nunca chegue aos ouvidos dela, mas esta mulher parece ter nascido de Jararaca ou de Cascavel. O ovo chocando não suportou a pessoa peçonhenta que estava por dentro e foi forçado a se quebrar antes do tempo, para que a pequena víbora despontasse logo, já maquiada e pronta para o bote e começasse rapidamente a devorar os outros ovos, para em seguida sair ainda faminta em busca de qualquer calcanhar, depois do corpo inteiro, para mais tarde se contentar apenas com os bolsos.
Até que era bonita a danada; linda melhor dizendo. Alta, morena clara, de cabelos negros caindo sobre os ombros, olhos verdes igual aos da cobra africana, pele macia que nem parecia recoberta de escamas. Corpo esguio e perfeito nas formas. O sorriso de Lucena era ao mesmo tempo misterioso e encantador, pois dizem que tinha o dom de silvar e mostrar uma língua pontiaguda e entrecortada todas as vezes que movia e lambia os lábios gulosos.
Falava baixinho, chamava baixinho, gritava mais baixinho ainda, mas as pessoas, principalmente os homens, de repente já estavam absolutamente entregues e desprotegidos onde ela ordenasse. Chegando, se fosse mulher, era logo envenenada pela palavra, pela difamação, pela honra ferida; se fosse homem, coitado, tinha o seu sangue sugado gota e gota e depois deixado abandonado para secar ao sol. E mais tarde, quando aprontava dessas, a serpente saía caminhando por cima de pedras, onde os demais pudessem ouvir os seus tamancos fazendo barulho e marcando presença.
A serpente Lucena faz fama por ser assim. Todas as vezes que faz o mal sai dando tamancadas pelas redondezas, fazendo barulho por anda passa, só para deixar bem claro que é perigosa, é faminta, á devoradora, é víbora, é tudo que é ruim. O pior é que a todo instante se ouve o silvado e os tamancos dela.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Que tenhamos cuidado coma Lucena Rangel, intrigante texto, mas acho que são tantos Lucenas por ai, pois o barulho do tamanco se percebe todos os cantos.Um abraço.
Postar um comentário