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domingo, 19 de junho de 2011

TEMPESTADE - 41 (Conto)

TEMPESTADE – 41

                          Rangel Alves da Costa*


Era uma cena terrivelmente medonha, mas o corpo da falecida feiticeira, a velha Otília, zanzava de um lado para o outro por cima das águas acumuladas em grande volume no seu quintal.
Quando os relâmpagos disparavam suas luzes e as cores cortantes refletiam no rosto da velha, era como se enxergasse ali uma senhora apenas adormecida e prestes a abrir os olhos a qualquer instante. Coisa inexplicável, do outro mundo, pura assombração, mas seres terríveis tentavam a todo custo dar novamente sinais de existência àquele corpo jogado ao abandono.
Só mesmo vendo para acreditar, ou não acreditar de jeito nenhum, mas de vez em quando emanações nebulosas iam se formando por cima do corpo e desciam para sumir como se tivessem ultrapassado a pele morta. E logo após a entrada desses vapores um pé se mexia, uma perna parecia querer dobrar-se, os dedos ganhavam rigidez e o corpo chegava a estremecer.
Tudo isso acontecia muito rapidamente, pois tais espectros rondando o corpo da velha feiticeira soltavam gritos abafados, porém apavorantes e espantosos, todas as vezes que uma luz diferente, bem forte e brilhante e que não surgia com os relâmpagos, repentinamente aparecia no alto ou pelos cantos do quintal. Pouco depois e tudo começava novamente, com as mesmas emanações rondando e a luz aparecendo para dissipá-las.
Verdade é que não era coisa desse mundo e dificilmente um ser vivente poderia explicar. E quando aquele dilúvio cessasse muita coisa teria que ser desdobrada para receber explicação, vez que os acontecimentos presentes desafiavam o conhecimento e a sabedoria de qualquer um.
Em alguns casos as pessoas realmente duvidavam que aquilo tudo pudesse estar acontecendo; noutros os indivíduos sabiam o quanto eram frágeis diante das forças revoltosas da natureza, do clima e de tudo que pudesse ocorrer, mas ainda assim não queriam acreditar no que estava ocorrendo, com aquela velocidade e força; e ainda outros continuavam como se não estivessem entendendo nada, como pessoas ainda totalmente tomadas pelo espanto e sem se dar conta da plena existência e magnitude do problema.
Com problemas também, e grandes para resolver, estava a mocinha Inácia, com Dona Querência morta em cima do sofá e a pobre coitada sem saber o que fazer, sem ter quem chamar, sem poder fazer realmente nada. Já havia tido o paripaqui que podia ter, já tinha pulado e gritado, já tinha se descabelado e se desesperado, mas agora estava apenas rouca. Rouca e angustiada, impotente, com medo, querendo correr porta afora, querendo sumir, querendo desaparecer dali.
Quando se lembrava do neto da defunta, o menino Betinho, ficava ainda mais atordoada e começava a se perguntar como ele reagiria quando soubesse do passamento da avó, como seria sua vida dali em diante, quem continuaria cuidado dele, vez que a mãe nem dava sinal de existência e os outros familiares não estavam nem aí pra ele.
Mas sabia que logo mais, assim que a tempestade passasse e soubessem do ocorrido, logo chegariam batendo à porta cheios de falsos sofrimentos e comoções, lamentando a morte de uma pessoa tão boa e que era para todos como a própria mãe, a razão maior de suas existências. Mas tudo de olho na herança da velha senhora, pensando em botar a mão em qualquer quinhão do muito que certamente ela havia deixado.
E pensava nesse bando de urubus, nesses aproveitadores da morte dos outros com asqueroso ódio. Os mesmos falsos que iriam invocar linhagem familiar, o mesmo sangue correndo nas veias, eram os mesmos que nunca apareciam para uma visita, para saber como ela estava de saúde, para perguntar se estava precisando de alguma coisa. Agora depois de morta, e só porque havia deixado uma respeitável herança, é que era boa, é que era a verdadeira santa Querência.
Não se sabe o que se passava na sua cabeça, se estava bem ou repentinamente havia entrado em surto diante das circunstâncias, mas a verdade é que a mocinha Inácia sentou numa cadeira bem em frente aonde a velha pendia o corpo desfalecido e começou a conversar com esta, como duas amigas que dialogam e a outra prestava atenção no que dizia:
“A senhora marcou viagem e nem avisou a ninguém. Coisa feia o que a senhora fez, arrumou as malas pra ir embora e não avisou nem ao neto. Betinho gosta muito da senhora e merecia muito mais respeito, viu? Quando ele souber não vai gostar nada disso, e a senhora bem sabe como ele é, ainda meninote mas gosta de tudo certinho. Se ele tivesse aqui duvido que a senhora viajasse assim sem que ele permitisse, sem que dissesse sim ou não. Duvido que a senhora fosse pra qualquer lugar se ele tivesse aqui. A senhora mesma não ia ter coragem de fazer uma coisa dessas com o bichinho. Duvido que a senhora de uma hora pra outra cismasse de fazer uma coisas dessas deixado ele naquela idade sozinho aqui, sem praticamente ter ninguém pra tomar conta dele. Praticamente não, ninguém, pois eu tô fora dessa, eu não vou ficar aqui pegando no pesado pra cuidar do filho dos outros se a senhora quis ir embora sem dar satisfação a ninguém. O problema é seu, sua viajante. Se a senhora pensa que vai sair por aí e deixar eu tomando conta dele aqui está muito enganada, pode tirar o seu cavalinho da chuva, pois ele pode muito bem se virar sozinho, ele pode muito bem...”.
E se danou a chorar numa aflição jamais vista, colocando as mãos na cabeça e por fim dizendo, como se estivesse completamente louca:
“Vá, vá logo, não deixe nem rastro. Pode ir que juro jamais deixar meu Betinho abandonado, sozinho, sofrendo. Oh, Betinho, como você está agora, venha logo pra casa que sua amiguinha vai tomar conta de você, pra o resto da vida se preciso for...”.

                                                   continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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