SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 22 de junho de 2011

TEMPESTADE - 44 (Conto)

TEMPESTADE – 44

                          Rangel Alves da Costa*


Com a força do vento, com a fraqueza da madeira molhada, com os paus já velhos e apodrecidos, com o peso da chuva, com o castigo dos pingos grossos, com tudo de ruim que estava prestes a acontecer, somente a extrema fé de um povo para erguer a mão do Senhor em direção ao alto e sustentar as ripas, os caibros, a cobertura quase esfarelada.
Naquelas casas pobres, residências desprovidas de um tudo, muitas vezes faltando porta e janela, sem mobiliários nem qualquer tipo de aconchego, apenas como moradia para o contentamento e guarda dos dias e noites, jamais a força da crença esteve ausente. Pelo contrário, esses ambientes de pobreza sempre foram os locais onde a fé e a religiosidade mais se expressaram na sua maior plenitude.
O povo carente, vivendo à custa e na esperança de qualquer pão, muitas vezes na extrema pobreza, ladeados pela fome e pela falta dos produtos mais básicos de sobrevivência, ainda assim fazia da fé o seu sustentáculo maior e nisso a certeza que a vida não era tão ruim assim, mas apenas cheia de dificuldades. Daí agradecer a Deus por tudo, do amanhecer ao anoitecer, pela casinha que tinham, pelo feijão com farinha, pela água pra beber, pela existência que continuavam tendo.
Que fizesse sereno ou sol ardente da tarde, que fizesse qualquer tempo ou qualquer circunstância, bastava o sino da igreja mais próxima tocar chamando para os cultos cristãos, e lá seguiam em verdadeira romaria para orar pela família, agradecer a vida que continuava, implorar por dias melhores e pedir ao seu Deus que jamais os esquecesse. Assim se fazia a fé desse povo que não tinha nenhum nem anel no dedo, mas tinha por formação aquilo que nenhum doutoramento podia garantir: a fé, a extrema fé!
Nesses casebres e barracos podia faltar de tudo, como geralmente faltava, mas nunca a imagem do santo, o retrato do santo na parede, o menino Jesus protegendo a casa, um quadro de Jesus Cristo ladeado por fitinhas, tendo sempre por perto velas e outras oferendas de fé e devoção. Os rosários e crucifixos como peças essenciais nos momentos de preces e orações, uma bíblia sagrada sendo luxo demais para um povo que geralmente não sabia ler, na porta de casa uma plaquinha dizendo que “Esta casa é abençoada por Deus”, “Nossa família tem a proteção divina”, “Deus também mora aqui”.
Não tinham muita leitura e quase nenhuma escrita, os mais velhos só contavam com a experiência de vida e as lições que tão bem conheciam, já os mais jovens eram vigiados para não perderem os costumes da fé e da religiosidade. Por isso mesmo que nas residências tanto se ouviam as rezas e orações. Cantada, citada baixinho no canto da boca, o eco alcançando os céus. Uma oração, muitas preces e rezas, benzimentos e palavras divinas, tudo na fé maior.
Uma Oração ao Sagrado Coração de Jesus: “Senhor Tende piedade de nós/ Jesus Cristo, tende piedade de nós/ Senhor Tende piedade de nós/ Jesus Cristo, ouvi-nos/ Jesus Cristo, atendei-nos/ Deus Pai celestial tende piedade de nós/ Deus Filho Redentor do mundo tende piedade de nós/ Deus Espírito Santo tende piedade de nós/ Santíssima Trindade que sois um só Deus tende piedade de nós/ Coração de Jesus, Filho do Pai Eterno tende piedade de nós/ Coração de Jesus, desejo das colinas eternas tende piedade de nós/ Coração de Jesus, formado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Mãe tende piedade de nós/ Coração de Jesus, de majestade infinita tende piedade de nós/ Coração de Jesus, templo santo de Deus tende piedade de nós/ Coração de Jesus, tabernáculo do Altíssimo tende piedade de nós/ Coração de Jesus, casa de Deus e porta do céu tende piedade de nós/ Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade tende piedade de nós/ Coração de Jesus, santuário de justiça e de amor tende piedade de nós/ Coração de Jesus, digníssimo de todo louvor tende piedade de nós/ Coração de Jesus, Rei e centro de todos os corações tende piedade de nós/ Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, perdoai-nos Senhor/ Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, ouvi-nos Senhor/ Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós/ Coração de Jesus, salvação dos que em vós esperam tende piedade de nós/ Jesus manso e humilde de coração fazei o nosso coração semelhante ao Vosso.
Um Pai Nosso: “Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos dai hoje; perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos de todo o mal. Amém”.
Uma Ave Maria: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois Vós entre as mulheres e bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”.
Uma Profissão de Fé: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra; e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos; creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém”.
Por isso mesmo não há que se duvidar que mesmo diante de uma situação tão extrema, vendo a hora do barraco desabar, o telhado cair, um mundo de água passar por cima e levar tudo, não eram poucas as pessoas que, ao lado dos olhos aflitos e coração apertado, tinham a boca e as mãos ocupadas com a prece, com a oração. Se a crença era o último refúgio e a fé era o meio mais eficaz de alcançar a proteção divina, então que essa devoção se fizesse superior a tudo.
E também foi por isso, por essa abnegação extrema pelas coisas divinas, que o telhado da casinha dos pais de Inácia suportou gemendo, pendendo aos poucos, até o instante que eles se jogaram nas águas que corriam lá fora. Bastou que estivessem uns dois metros do lado de fora, levados na escuridão da correnteza, que tudo desabou de vez. As paredes ainda ficaram de pé, mas todo o telhado se misturou às águas e ao lamaçal que se formava por baixo.
Lá fora, entregues à correnteza, de mãos dadas, como se dissessem que morreriam juntos, os dois gritavam por socorro.

                                                       continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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