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quarta-feira, 15 de junho de 2011

TEMPESTADE - 37 (Conto)

TEMPESTADE – 37

                          Rangel Alves da Costa*


Acenderam velas na sacristia e colocaram o seminarista sobre a cama de descanso do sacerdote sempre ausente. Talvez o pároco daquela igreja fosse o único no mundo que todas as vezes que retornava ali praticamente não reconhecia mais nada. Certa vez disse que ia comunicar à diocese sobre as constantes ausências do padre responsável pela igreja. Sendo ele mesmo, só podia estar completamente gagá.
Na preparação da cama, na troca de lençóis por um mais enxuto, revirando aqui e ali, Minervina colocou a mão por baixo do colchão e sentiu tocar em algo parecendo um caderno. Nem pensou duas vezes e fez aquilo que sempre faz mulher enxerida, que não pode ver nada que é dos outros em paz e vai bisbilhotando: puxou o objeto desconhecido e colocou debaixo da blusa.
Depois que estenderam Tristão por cima da cama e ajeitaram sua cabeça no travesseiro, e antes mesmo que falassem nos passos seguintes para cuidar da doença do fraquejado e dolorido rapaz, Socorro puxou a outra pelo braço e disse: “Eu vi você escondendo um negócio aí debaixo da roupa, pode logo me dizer o que é”. “Eu também vi”, falou baixinho Rosinha por trás.
O mundo começou a desabar aos pés de Minervina. Tinha vontade de fazer um novo escarcéu, de dar uma nova esculhambação, de dizer que elas se incomodassem com suas vidas, mas não podia fazer isso porque ainda mantinha a prova do fato no mesmo local, debaixo da roupa. Se dissesse que não tinha nada ali poderiam avançar, tirar o objeto à força e até poderia ficar completamente nua da cintura pra cima.
Tentou dar um novo rumo à conversa, mudando o assunto para coisa mais importante, que naquele momento dizia respeito à saúde do sacristão, mas não teve jeito. E foi chegando uma e depois outra, mais outra e de repente o que se ouvia era “O que vocês tanto cochicham?”, “Vocês três tão escondendo alguma coisa da gente?”, “O que é Minervina, que essas duas não largam do seu pé?”.
E não suportando mais tal situação, tanta pressão de quem parecia não ter o que fazer, Minervina botou a mão ligeiro por debaixo da blusa e arrastou o objeto. Era um caderninho, tipo agenda, já envelhecida, mas parecendo conter algo muito importante. Então, com o caderninho levantado no braço, a portadora disse bem alto:
“É esse caderninho que vocês querem então tome e façam bom proveito. E antes que vocês digam que remexi por aí pra pegar no que é dos outros, digo logo que topei nele debaixo do colchão, enquanto estava ajeitando para o doentinho ficar deitado. Digo e repito, se vocês estavam tão preocupadas com isso aqui, então tome e podem ler à vontade...”. Mas mantinha sempre o livreto afastado.
“Não, pelo amor de Deus não leiam isso não. Será pecado mortal ler os escritos do padre Rufalo. Ademais esses escritos...”. Era Tristão ainda mais desesperado, tentando a todo custo falar para ser ouvido e evitar que lessem o que estava escrito. Mas aproveitando essa tamanha preocupação e num crescente interesse que chegava a atiçar o juízo, Antonieta perguntou ao doente, sem se importar se agüentaria ouvir ou não:
“Mas o que teria ali de tão misterioso, mirabolante e estrambólico que a gente não possa ler? Pra ficar preocupado desse jeito é porque o seminarista já deu uma olhadinha nisso aqui, não foi não? Se você leu e não cometeu pecado mortal, então por que nós, que todos dizem que já temos pecados de sobra, não podemos ter um pecadinho a mais, não é mesmo? Venha aqui Custódia, traga essa vela pra perto de Filó que ela vai ler o que está escrito. Desça esse segredo Minervina...”.
“Não, não façam isso. pelo amor de Deus não...”. Tentando se erguer da cama a todo custo, o seminarista não suportou tal esforço e fraquejou de vez, pendendo a cabeça de lado completamente desmaiado. “Chega todo mundo que o doentinho parece que morreu. Acudam pelo amor de Deus”, gritava Minervina quase voando pra cima da cama.
“Tá vendo o que você fez Antonieta? Se ele morreu a culpa é sua e não queria tá na sua pele quando o espeto em brasa for lhe chiqueirando em direção à fogueira da gritaria eterna. Não tem pecado maior do que rogar praga a padre ou mexer com os ofícios da religião. Matar seminarista deve ser começar a esturricar ainda em vida, e vá se afastando que já tô sentindo fumaça saindo de perto de você...”, atiçava Socorro, doida pra criar mais confusão. E conseguiu.
“Quem vai queimar no fogo dos pecadores e infiéis é você sua desgraçada, e vai logo, vai agorinha mesmo porque vou lascar sua cara safada nesse instante. Você não passa de uma vagabunda, mentirosa, falsa, uma canalha de marca maior, rampeira de pé de muro, quenga de trepar por cima das covas do cemitério. E diga que é mentira minha, sua sem vergonha, desqualificada, diga, diga...”.
E foi preciso que umas quatro formassem um cinturão entre as duas para evitar o pior, pois Socorro já estava com um porta-chapeus pronto para atingir a desafeta, além de uma verdadeira metralhadora na boca disparando mil impropérios:
“Não ia dizer mais agora todo mundo vai ficar sabendo que você acoita, dentro do cabaré que é sua casa, a raparigagem entre a mulher do vereador Totó e o almofadinha do Paulinho da moto. E faz isso pra ninguém saber que também abre as pernas pra o mesmo Paulinho. E diga que e mentira minha, diga...”.
“Pelo amor de Deus, querem parar com isso, ou vocês acham que todo mundo tem ouvido de penico, de fossa ou de cagador, hein? Tenham ao menos respeito por esse pobre moribundo que parece estar nas últimas, se despedindo da vida nos melhores dias de sua vida...”, falava gritando Minervina, levando a mão ao peito de Tristão para saber se ainda batia. E continuou, agora mais calma:
“Continua vivo, mas está muito fraquinho. Pelo amor de Deus respeitem o estado dele e vamos procurar fazer alguma coisa rapidamente. E ninguém fale nesse caderninho agora que depois a gente pensa no que fazer com ele. Venha cá Filó, molhe um paninho na água e passe pela testa dele. Vocês duas, Rosinha e Socorro, peguem uma vela e vejam se conseguem abrir aquele armário e procurar se tem alguma bebida, algum remédio, alguma coisa assim. Venha cá Custódia, me ajude a tirar a roupa dele...”.
“Ah, não minha filha, essa parte eu faço sozinha!”, se ofereceu Antonieta, já avançando pra cima do doente. “Te esconjuro coisa ruim, saia pra lá”, e Minervina deu-lhe um empurrão que a outra se espatifou pelo chão. Ao levantar, raivosa que só, avançou com toda força pra cima da outra bem no momento que esta se desviava da pancada certa.
E Antonieta caiu com todo o corpo e força por cima da cama do pobre moribundo. O impacto foi tão grande que o leito  não suportou e foi abaixo.
“Valei-me pai eterno!”, foi o espanto geral que se ouviu.

                                                         continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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