SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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terça-feira, 14 de junho de 2011

TEMPESTADE - 36 (Conto)

TEMPESTADE – 36

                          Rangel Alves da Costa*


“Acudam aqui que Teté vem trazendo nos braços o corpo morto do seminarista Tristão!...”. Tal anúncio bombástico, num grito que superou o barulho da tempestade, fez com que todas as mulheres entrassem de vez em polvorosa.
“Morreu como o bichinho, quero ver o corpo do bichinho morto, onde ele está?”, indagava uma aos berros desesperados.
“Como foi a morte desse inocente de Deus? Foi tiro, furada, tropeção, batida, ataque do coração, piripaqui estripador, o que foi que matou esse inocentinho de Deus?”, perguntava outra, já se debatendo pelo chão em agonia.
“Mas não pode ser, tão novo, tão bonito, tão inteligente, a verdadeira salvação da igreja, e morrer assim nos braços da escuridão tempestuosa, como se a vida lhe tivesse sido também de muitas lágrimas e dores. Oh, dor, oh, destino, oh, tão grande desatino o desse menino, que a mão divina arrebatou-nos assim ainda no alvorecer da vida!”. Era um lamento tormentoso, proferido por uma tomada de sentimento poético nesse singular momento.
“Meu Deus, meu Deus, que vida injusta, que vida ingrata, com tanta gente ruim por aí, metida a besta, orgulhosa, egoísta, safada, mentirosa, uma verdadeira corja de canalhas e ladrões, e a morte vem recair sobre os ombros desse pobre infante prometido à vida religiosa. Tira a mim, ó Senhor dos pecadores, leve a Ti essa maculada alma, chega de devassidões e pecados, ainda que não tantos como dizem, mas deixai sobre a terra, como ser vivente por muitos e muitos anos esse menino chamado Tristão. Será por que Tristão rima com tristeza, ou por que a dor rima com qualquer um que faça de sua vida um caminho de amor?”. Outra poetisa da aflição, de braços erguidos, em frente ao altar, voltada à Cruz do Senhor.
“Tristão morreu sem sentir o sabor do beijo de sua amada, sem sentir o corpo macio e quente de sua linda flor, sem sentir o prazer que o homem deve oferecer à mulher para que o prazer seja retribuído e o verdadeiro amor se concretize. E alguém sabe como estará a viuvinha professorinha, aquela que vai vestir luto do amado sem jamais ter colocado aliança nupcial no dedo?”.
“É mesmo, se ele saiu daquela forma para a morte e dizendo que ia em busca de salvar a professorinha que estava muito doente, como estará a pobrezinha nesse momento? Conheço histórias dizendo que quando o amor é muito grande os corações se comunicam na dor e pode acontecer dela também ter morrido por causa do passamento do coitadinho do seminarista”.
Ainda nos braços do maluquinho, todo cheio de dores que mal podia abrir os olhos, Tristão não suportou mais ouvir tantas besteiras, tantas babosices e agouros que tentou falar e colocar um basta naquilo tudo. Entretanto, sentindo que não seria ouvido começou a se balançar nos braços do carregador e como este não dava sinais que o colocaria no chão, resolveu pular de onde estava. Deu um impulso e se segurou em pé por instantes. E foi pior a confusão.
“Valei-me Deus, que o defunto ficou em pé!”.
“O morto levantou da morte, está em pé, e se andar vem buscar todas as pecadoras que estão aqui!”.
“Morte mal resolvida, alguma coisa não resolvida. O pobre do homem voltou. O que será que ele quer pra embarcar de vez?”
“Morreu e renasceu, só pode ter sido isso. É a vitória dos bons diante da morte, pois lhe foi concedido o direito de continuar entre os vivos”.
“Calem a boca e cada uma trate de fugir antes que seja tarde demais. Já vi um filme que um morto ficava vivo de novo e depois ele foi comendo a cabeça de todo mundo que encontrava. Corram e se escondam enquanto é tempo, se virem se tem amor à vida!...”.
E então foi cadeira e banco virando pra tudo que é lado, com cada uma correndo e procurando se esconder pela escuridão dos cantos, por trás das cortinas, embaixo da mesa, novamente dentro do confessionário, que a essa altura já estava entupido. Uma, completamente perdida, não encontrando mais lugar onde se esconder, foi devagarzinho e ficou bem atrás de Tristão, como se estivesse escondendo do rapaz morto.
Não suportando mais tantos insultos, ofensas e babaquices, o maluquinho Teté gritou de forma tão violenta que cada uma ficou silenciosamente onde estava para ouvi-lo. E ele foi ao ponto crucial:
“Vocês estão doidas é? Quem foi que disse que o seminarista está morto? Ele está vivo e bem vivo, apenas precisando que vocês providenciem imediatamente remédios para que ele fique recuperado das dores da queda que tomou na rua e como meio de não ficar doente pela água da chuva que teve de beber enquanto estava caído quase se afogando. Só isso, e agora voltem aqui agora mesmo e cuidem dele”.
Quando elas se aproximaram para se assegurar do que tinham ouvido, já encontraram o seminarista desmaiado no chão, respirando com dificuldades, com o corpo já no vulcão febril. “É mesmo, ele está muito fraquinho, febril e precisa ser medicado. Vamos colocar levar ele lá pra sacristia e deitá-lo na cama, assim será mais fácil de cuidar”.
“E quem vai tirar a roupa dele?”, perguntou uma se insinuando, enquanto outra respondeu na maior altura: “Você não respeita nem os doentes, sua sirigaita. Até nessa hora só pensa em homem nu, pensa perdão a Deus”. “Eu não, peça você que quer tomar conta dele sozinha e eu sei pra que é...”.
Ainda bem que Teté não ouviu mais essa palhaçada, pois enquanto elas carregavam o seminarista ele abria a porta da igreja para correr em direção à escola. Fazia o certo, mas também o errado, pois bem que poderia ter colocado umas três colheradas daquele elixir curativo na boca do enfermo Tristão.
Se a questão era salvar vidas, salvar aquelas duas era um gesto mais que humanitário. Os deuses do amor certamente agradeceriam depois. Contudo...

                                                 continua...





Poeta e cronista
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