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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 25 de junho de 2011

LISTA DE PRESENTES (Crônica)

LISTA DE PRESENTES

                       Rangel Alves da Costa*


Hoje é meu aniversário, qualquer dia, qualquer hora, sempre é meu aniversário. Aniversário do dia seguinte, das horas que acordei, que comecei um namoro para ser eterno, que fui despedido do coração amado por justa causa. Art. 354 da LRC (Lei das Razões do Coração): “É justa a despedida do coração daquele que dele se ausenta por qualquer motivo, ainda que diga que ama”.
Hoje também faz aniversário de dez ou vinte dias que procurei outro amor, porém não fui aceito com base nessa maldita lei. Com efeito, para não querer me namorar ela se baseou no art. 511: “Não deve ser permitido fazer contrato de experiência com o coração, vez que a ninguém é dado o direito tentar esquecer um amor fingindo, experimentalmente, que ama outro”.
Tudo bem, se é assim que seja. Contudo, nada impedirá que comemore meu ou meus aniversários do jeito que eu quiser e na hora que eu quiser. Mas antecipo que os presentes que gosto de receber nesses aniversários dificilmente alguém poderá me conceder. Abomino se me chegam com roupas, gravatas, meias, carteiras, cintos e perfumes. Nada disso me satisfaz diante da simplicidade que sempre espero receber.
Num tempo já distante, quando ainda morava no interior, fiz uma grande festa para um aniversário de verdade. Aniversário de nascimento, com data certinha e muita gente pra comemorar. Muito mais pra bebemorar, é verdade. Não estava esperando receber presente de ninguém, mas de repente me chega uma pessoa dizendo que não tinha outra coisa pra me presentear então me entregou uma melancia.
Ora, era pessoa simples, humilde, da roça, e a melancia possuía um significado muito grande, pois parte da própria sorte de sobrevivência. Talvez eu tenha recebido outras lembranças, mas juro que nada igual ao presente inusitado e diferente, ainda com cheiro da terra, certamente doce demais se eu tivesse coragem de passar a faca. E ficou guardada até o dia que apodreceu, mas sem deixar de fazer em mim o intenso e imenso efeito da felicidade.
Outro dia ganhei de uma velha amiga aqui da rua um singelo presente: um salmo enroladinho dentro de uma minúscula garrafa. Gostaria de beber cada palavra dessa bendita lembrança. De outro ganhei um relógio de areia, essa tal ampulheta, me dizendo que era pra lembrar quando eu cursava História. De tão bonito que acho, de vez em quando fico revirando o relógio e transformando a areia que lentamente cai na imagem da própria vida que se esvai.
Há alguns anos atrás me chegou às mãos, como presente que me custou muito esforço, um velho caderno com anotações familiares e rascunhos de uma vida de antigamente. Pelos escritos dispostos e datas ali encontradas, o tal caderno, mais parecendo uma brochura de capa e tudo, porém já bastante deteriorado, datava dos idos de 1800. Nele, além de nomes de uma extensa linhagem familiar, havia também uma dezena de partituras de missas para piano, como as inscrições em latim deixavam perceber.
Um dia emprestei o tal caderno a uma pessoa do Conservatório de Música de Sergipe e foi o meu maior erro. Até a amiga perdi, pois a pessoa sumiu talvez para não devolver mais aquela preciosidade. Depois disso resolvi que todos os presentes que já recebi devem ficar nas gavetas empoeiradas, baús escondidos, mas muito mais protegidos do que se ficarem ao alcance de qualquer olhar senão o meu.
Na verdade, gostaria de receber outras melancias como presente, e é por isso que faço tantos aniversários, cada um quase para comemorar a passagem do outro. Mas ninguém me oferece mais uma coisa simples e contagiante, humilde e inesquecível. Como eu gostaria de receber uma lembrança de palha de coqueiro, um pedaço de tronco de mato, um caneco de araçás amarelinhos, um cestinho de pitombas maduras. Qualquer coisa que venha da terra aceito como presente.
Mas não só da terra, pois aceitaria de bom grado um pedaço de nuvem, umas gotas d’água, um tiquinho de entardecer, uma lua acompanhada de sol, uma estrela trazendo junto a escuridão. E o pensamento, como é bom ganhar você de presente no pensamento.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
    

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