SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 29 de fevereiro de 2020

DE DESALENTOS E CAMINHADAS



*Rangel Alves da Costa


Os tempos sertanejos já estão mais entristecidos, desalentados, desvalidos como a planta angustiada e o tanque já sedento. Os períodos chuvosos foram passando, as sementes esturricaram debaixo do chão, tudo foi definhando de vez. Não é só o cenário de paisagens desalentadoras de agora, mas as experiências matutas, as velhas sabedorias sertanejas, antevendo dias de tristezas ainda mais contundentes. Coisas de cortar coração, como no mundo-sertão se diz.
Verdades que muitos preferem viver a ilusão do verdor ainda existente num canto ou noutro. Mas como existir tempo bom sem a comida no pasto, sem a água na fonte, sem a despreocupação com o amanhã? Como dizer que tudo está bem, que tudo é confortante, se o velho cesto já foi retirado dos cantos para a palma pinicada, o resto de capim, qualquer coisa que vá sustentando o bicho? Noutros idos, então se dizia que estava chegando o tempo do pote rachando e da moringa molhada apenas pelas lágrimas do barro.
Muitos ainda se deixam enganar pela tal da seca verde. Aquela mesma do aparente verdor, da ilusão da terra molhada e da bonança do clima. Mas quem é enraizado na terra não se deixa enganar. Ainda que existam algumas flores e frutos por cima dos campos, nada se mostrará como bom se nos horizontes apenas a permanência de mil sóis a cada instante do dia. A seca verde é como um papel manteiga por cima do chão abrasado. Não demora muito e tudo vai virando cinzas de vez. E para fugir dessa ilusão, somente os sons dos relâmpagos e dos trovões, somente a chuvarada caindo, somente aquele cheiro forte da terra sendo entranhada pelo pingo grosso.
Enquanto as nuvens gordas, negras, prenhes, estiverem nos escondidos, nada se mostrará como esperançoso aos olhos sertanejos. Olhos que também avistam as esperanças nos gravetos de pau, nos ninhos dos passarinhos, nos sopros do vento. Na sabedoria sertaneja, fazendo a leitura do mundo, graveto que parece se retorcer sozinho é sinal de chuva breve. Quando os ninhos são feitos nas locas mais altas das pedras e não na copa das árvores, igualmente sinaliza chuvarada que se aproxima. Quando o vento começa a sopra assobiando, forte e fazendo curva, a certeza de muito pingo d’água cairá.
Mas por enquanto nada disso. Nenhuma leitura no tempo está sendo proveitosa. O que se espalham são os medos, os temores, as reclamações de falta de água, de comida pro bicho, de alimento à mesa. Os retratos vão surgindo e estes mostrando os campos secos, os barreiros vazios, os pequenos rebanhos pastando entristecidos debaixo do sol. Quem não teme ser humilhado ou tornar o seu voto e de sua família em moeda de troca, logo vai esmolar uma carrada d’água ao político da hora. E agora, em tempos eleitorais, são muitos. Mas depois?
A politicagem desenfreada sempre humilhou o sertanejo. O homem da terra, tão forte e tão lutador, mas fragilizado perante as estiagens, de repente se vê às portas da prostituição eleitoreira. Mais que uma humilhação, uma verdadeira desonra àquele que tem de submeter ao político em busca de um pouco de água para a sua cisterna. E basta que um carro-pipa chegue à sua cancela para nunca mais deixar de ser usado e abusado pela política. Daí para sempre será lembrado como aquele que deve o voto por causa de um pouco d’água.
Mas sempre assim. Mesmo na humilhação, na submissão eleitoreira, o temor maior é que as chuvas sumam de vez e a seca voraz abra cada vez mais sua boca. O medo maior é ouvir o bicho berrando e nada poder fazer. A angústia maior é avistar tudo ressequido e os sonhos serem engolidos pelo sol inclemente. E ter que desistir daquele mundo seu, e ter de fechar as portas da casinha, e ter que arribar mundo afora sem destino certo. Assim como aqueles retirantes tão bem retratados por Portinari. Famílias pelas estradas nuas. Restos humanos sendo levados ao deus dará.
Um espelho vivo da obra do grande mestre da pintura brasileira. Após os anos 40, Cândido Portinari deu início a uma série de pinturas que espelhavam a realidade social brasileira e, mais de perto, a nordestina. Exemplo disso, em 1944 surgiram as famosas e expressivas telas denominadas “Os Retirantes”. Nestas, tão conhecidas, uma família pelas estradas áridas, secas e espinhentas, fugindo das aflições de um mundo de dor e sofrimento.
Ante a fidelidade dos retratos pintados, sequer precisaria dizer mais alguma coisa. Ali a família fugindo da seca, tão esquelética e triste quanto o seu próprio mundo desfolhado e seco. Ali a família tendo que arribar de seu mundo e seguindo em desvalia pela incerteza das estradas. Ali o fiel retrato da desvalia nordestina ante a estiagem devoradora de tudo, lançando ao desalento vidas de todas as idades.
O que se teme, com os avanços sempre inevitáveis da seca, é que tais pinturas sejam novamente retratadas em cenários melancolicamente vivos pelas estradas sertanejas. Famílias que partem, mundo que fica. E sem um olhar para trás. Não há mais lágrima. A estrada, apenas.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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