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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

CARTINHA AO BICHO-PAPÃO



*Rangel Alves da Costa


Seu bichão, seu feião, aceite minhas saudações... Espero que não se incomode com essa cartinha, pois sei que talvez nem leia o que está escrito, a não ser que com ela seguisse algo para você abocanhar de vez com essa gulodice descomunal.
Eu bem poderia ter escrito essa cartinha e enviado para outros bichos, outros seres sobrenaturais e outras assombrações iguais a você. Poderia ter sido escrita para a bruxa da vassoura, para o duende, o saci-pererê, o bicho da mata, o cavalo de fogo ou os olhos de fogo, pois tudo parte do meu universo passado e daquelas estórias para amedrontar menino traquina. Mas envio a você por uma – imagine – afeição que fui gestando em mim ao longo dos anos.
A verdade é que escolhi você pelo simples fato de que sempre fez parte de minha infância e ainda hoje eu tenho a sensação - senão certeza - de que continua debaixo da cama. Talvez continue mesmo, não duvido nada, ainda mais sabendo quem você é. Mas na minha criancice eu tinha medo mesmo. Qual menino que não tinha medo assim que o seu nome era dito de forma ameaçadora?
Tudo e seu nome sempre era envolvido. “Se não comer a papa eu chamo o bicho-papão”, “Se não dormir logo o bicho-papão vem lhe pegar”, “Se chorar eu chamo o bicho-papão que está debaixo da cama”. Você era um saco, sabia? Ninguém falava em realidade da vida, nas desgraças do mundo, nas durezas em tudo, mas somente em você. Ninguém dizia coisas boas, ninguém falava em esperança e felicidades, mas só em seu nome.
Parecia mesmo que, através do medo, o bicho-papão era serventia pra tudo. Contudo, era precisamente a sua ausência que mais me enchia de medo. Saber, mesmo falsamente e pelos outros, de sua existência, porém sem jamais o avistar, era o mais aterrorizante. Sabia que estava embaixo da cama, pois todo mundo dizia que você estava lá, que dormia ali, que só saia daí para pegar criança teimosa como eu. Meu quarto possuía uma cama, mas embaixo dela havia sua moradia. E nunca saia, sempre estava ali com suas feiuras e presepadas.
A imagem que me passavam era de uma medonhice sem tamanho. Um bichão feio, bem feio mesmo, de cabeça grande, olhos de fogo, dentes longos e afiados, mãos que chegavam a quase meio metro. E uma fome terrível de criança teimosa. E estava ali, bem ali debaixo da cama. Diziam-me até que você engolia criança malina e cheia de teimosia com uma cara de satisfação danada, e depois sempre pedia mais. Coisa terrível, não era seu bicho-papão, seu feião?
Muitas vezes, depois de uma reinação qualquer e já meninote, eu até achava que avistava suas mãos imensas e feias e suas unhas pontudas saindo debaixo da cama. Também acreditava ouvir sons estarrecedores e tinha certeza que era você. Mas você nunca apareceu. Fui crescendo, crescendo, e você nunca apareceu. O que não afastou nada da certeza de sua existência. Sei que existe sim, e tanto assim que agora estou enviando essa cartinha. No envelope escreverei assim: “Ao Bicho-Papão, debaixo da cama do meu quarto”.
Quero agora, contudo, fazer uma confissão: prefiro a sua existência, a sua contínua existência perto de mim, a outros bichos-papões que estão, de carne e osso, do lado de fora da porta. Seu bicho-papão, o verdadeiro bicho-papão é o homem. Não há mais lugar para ilusões ou temores infantis, vez que os bichos que estão por aí são tão verdadeiros quanto nossos tormentos. E ninguém precisa dizer que existem, pois todos são avistados nas violências, nas barbáries, nas atrocidades cotidianas.
Que bicho feroz é o homem! Prefiro mil vezes conviver com você, amigo bicho-papão, que me deparar com a maldade humana. Nesta não há ilusão nem saída, apenas o terror e o medo real. Existe bicho-papão, e de verdade, mais terrível que o homem? Duvido. O homem é capaz de toda maldade do mundo, e tudo feito pelo puro e consciente instinto da perversidade. O instinto de perversidade é tamanho que a satisfação exigente parece ser aquela que provoca o luto, a dor, o sofrimento, a descrença das graças da vida. Um ser humano revestido do mal e a maldade sendo propagada como coisa comum, tudo sendo tratado como banalidade.
As histórias contadas sobre você, amigo bicho-papão, ainda que pavorosas demais, sequer chegaram perto do que o bicho da vida real consegue fazer. Mil vezes prefiro conviver com a ilusão de sua presença a ter de me deparar com a brutalidade existente após a porta. As ruas são selvas, os seres são bichos, a vida é um grito de dor.
Então, amigo bicho-papão, peço que continue aí debaixo da cama. Até vou jogar um travesseiro para que você durma melhor. Qualquer coisa me avise, por favor. Sei que, assim como eu, também passará a ter medo dos bichos-papões da vida real. Sem mais para o momento, um grande abraço!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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