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domingo, 23 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 69 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 69

                                          Rangel Alves da Costa*


A partir do meio dia a imprensa já estava noticiando o terrível acidente ceifando a vida da jovem Carmen Lúcia, uma estudante de direito e filha de uma importante liderança regional do agreste, cuja formatura se daria dali a alguns dias.
 No dia seguinte os jornais estamparam nas manchetes: “Filha do ‘Senhor do Agreste’ morre vitimada por acidente de veículo”, “Pista molhada provoca morte de jovem prestes a se formar em Direito”, “Carro capota e jovem morre quando ia visitar a família”.
Detalhando a manchete, um destes jornais informava que:
“Ontem pela manhã, na rodovia estadual que faz a ligação entre a capital e a região agreste, um grave acidente ceifou a vida da jovem Carmen Lúcia, estudante de direito e cuja formatura se daria em breve. A vítima seguia em direção à sua cidade natal sozinha no seu veículo quando, aparentemente em consequencia das fortes chuvas que caíram na manhã de ontem em todo o estado, perdeu o controle do veículo e este saiu da pista, chegando a capotar violentamente e por diversas vezes, até ficar reduzido a escombros nas fendas de um penhasco. A perícia ainda não se pronunciou sobre possíveis causas do acidente, mas informações recolhidas extra-oficialmente por este jornal apontam para a hipótese da vítima ter cochilado ao volante, mas também não está descartada a possibilidade de outro veículo imprudente ter batido na lateral do carro, fazendo com que perdesse o controle e seguisse em direção à ribanceira. Com a violência produzida, a jovem foi arremessada para fora do veículo e teve morte instantânea, ainda que seu corpo não apresentasse marcas de ferimentos. Ela era filha do ‘Senhor do Agreste’, liderança maior do município de Mundaréu e região, e se dirigia à localidade precisamente para visitar e passar o fim de semana ao lado da família. Depois de ser recolhido pelo IML, o corpo foi liberado no final da tarde e foi levado para o município, onde será velado e sepultado”.
Logicamente que as reais causas do acidente somente algumas pessoas sabiam. Auto Valente logo cedinho, antes mesmo de levantar, recebeu uma mensagem no seu celular enviada pelo deputado dizendo que se preparasse para enviuvar da paixão. Ele não quis acreditar que o homem tivesse realmente a coragem de chegar a esse ponto, mas verdadeiramente sabia o que aquilo significava. O perigoso parlamentar havia deixado os blefes, as ameaças, e partido para a nefasta e assassina ação.
Depois desse aviso ficou perdido em temores, sobressaltado, amedrontado, temendo realmente pelo pior. Ora, é de se admirar, mas quem planta tanto o mal e sente brotar em raiz sua maldade, às vezes se indaga porque fez aquilo quando a colheita já está próxima. Através dele, porque advogado e agindo daquela forma tão irresponsável e absurda, todo o mal foi semeado e agora estava sentindo quase na pele, pois no coração, as consequencias. Tarde demais.
Não sabia do ocorrido, àquela hora ainda não sabia ainda que o freio do carro havia falhado e o carro perdido o controle e caído no penhasco. De fato na cidade ninguém ainda sabia, a não ser os serviços de emergência, o corpo de bombeiros e a polícia rodoviária principalmente, pois prontamente avisados via telefone por aqueles que primeiro presenciaram o carro já despedaçado lá embaixo. Mas ele sentia realmente que algo ruim havia acontecido, que o pior ecoava seu grito tenebroso.
Chorou feito menino ferido, se lamentou feito culpado que reconhece o mal cometido, silenciou completamente porque nem o mais forte grito sairia de sua garganta. Sim, ele era mal, maldoso, cheio de maldades e sabia que todos estes aspectos negativos haviam dado sua prova maior, mas também sabia que lhe restava algo de humano, de sentimental, de quem ama. E aquela que talvez deixasse de viver naquele dia não era outra senão a grande paixão amorosa de sua vida.
Ainda antes de os telejornais e os outros serviços noticiosos anunciarem o acidente e sua vítima fatal, o deputado telefonou-lhe e, primeiro num tom sério e falsamente respeitoso, perguntou se já sabia do ocorrido, do terrível acidente que vitimara a jovem Carmen, compartilhou os pêsames porque sabia de sua paixão por ela. Mas depois, galhofando, num festejo horrendo do outro lado, o convidou para brindar com um uísque especial o desaparecimento daquele grande perigo que os rondava. E disse ainda:
“Quem mandou fazer isso, preparar a morte da perigosa moça, que logicamente não fui eu e você sabe muito bem disso, teve o cuidado de fazer a coisa certa demais, num profissionalismo que parece até coisa de ficção, de cinema. Que gênio do mal é esse que teve essa ideia de tudo acontecer e ninguém jamais ficar sabendo os motivos, as causas, como esse acidente foi preparado e como deu o resultado tão esperado. Os jornais e até a perícia vão culpar logicamente as chuvas que caíram para ajudar, e com elas algum problema no freio do carro. Agora não saberão jamais porque o freio teria de falhar e causar realmente o acidente e a morte. Você sabe que são tantos os envolvidos, pessoas importantes que tinham interesse no fatídico acontecimento, que nem sei quem realmente está por trás dessa maquinação excepcional e corajosa. Deu tudo certinho, meu amigo, e como deu. Quando eu souber quem teve essa ideia genial certamente que darei um grande abraço e brindarei com o maior prazer do mundo. Venha logo pra cá e vamos brindar, venha, ainda é cedo mas temos que saborear com legítimo escocês a renovação através da morte do outro...”.
Auto Valente desligou o telefone sem responder nada, não disse uma palavra sequer. Emudeceu também espiritualmente, por instantes sumiu totalmente de si, desapareceu numa escuridão dolorosa, como se estivesse sendo atraído por um imenso abismo. Levantou, andou instintivamente, deu passos que não sabiam serem os dele, seguiu em direção a uma gaveta e de lá retirou uma arma.
Nem precisou olhar se ela estava carregada, pois deixava o pente completo, porém sem jamais ter precisado fazer uso de qualquer projétil. Mas um só lhe bastaria naquele momento. Puxou ainda da gaveta uma fotografia, colocou-a diante do olhar avermelhado, faiscante, beijou-a, disse que amava e pediu perdão, e depois seguiu em direção a um espelho, tendo numa mão o retrato de uma Carmen linda e sorridente e na outra a arma ardente, pronta para ser disparada.

                                                      continua...







Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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