NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 65
Rangel Alves da Costa*
O enraivecimento de Carmen, logicamente possuidora de todas as razões do mundo, fazia com que nem ouvisse os rogos de Auto Valente. Contudo, se ela atentasse um pouco mais para a importância do que ele dizia, certamente entenderia que não estava pedindo tanto em vão e a não ser verdadeiramente para o seu bem. Protegê-la era o que ele estava tentando fazer, mas não era ouvido com a devida atenção precisamente pelo seu histórico de mentiras, corrupções e absurdos. O mal daquele que mente é ser desacreditado sempre.
Contudo, ouvir daquele homem, ainda que o enojasse completamente, pedidos invocando até mesmo o nome de Deus, não seria um fato a ser completamente subestimado, desvalorizado. Às vezes os conselhos bons chegam de que nem mesmo se aconselha. Contudo, ela o fez, não procurou levar em consideração nenhuma palavra sequer do que ele dizia. Pelo contrário, procurou despedi-lo no momento seguinte tentando fazê-lo crer que tinha escutado suas desesperadas súplicas.
“Se já terminou o que tinha a me dizer pode ir embora, já ouvi tudo e até agradeço pelas informações. Assusta-me tanta preocupação agora comigo, mas pra qualquer efeito muito obrigado. Mas antes que esqueça, não sei se irei pra posse do juiz como desembargador ou visitá-lo depois na prisão. Lá a toga é listrada, diga a ele; lá o código usado é o do medo e terror, diga também a ele. Mas ele poderá nem sentir nada disso, pois lá também é o lugar ideal para enlouquecer as pessoas. Ele precisa saber disso tudo. Quanto a você só quero que me esqueça, somente isso. Lembrarei muito, mas por outros motivos, e os conhece muito bem. E é por tais motivos que quero ainda ter o desprazer de vê-lo, feito rato nojento de esgoto, apodrecendo naquela penitenciária. Ainda que eu não consiga ver isso, tenho absoluta certeza que outros virão. Quem sabe se não vai ser companheiro de infortúnio daqueles dois que você ajudou a mandar pra lá. Eles são inocentes, e você será? Destino melhor não terá seus outros amigos, pois aquele que faz aqui paga aqui mesmo, o mal feito ao homem tem de ser pago na terra mesmo. Logo saberão experimentar do mesmo veneno que andaram colocando em bocas inocentes. Quanto a mim, meu nobre advogado de uma figa, sei bem me cuidar. E pode avisar a eles que vivo sozinha, mas não sou cão sem dono não. O deputado sabe bem disso, conhece bem minha família, principalmente o meu pai, “o senhor do agreste”, como ele diz se tremendo. Amanhã mesmo vou relatar tudo isso ao meu velho, tudo o que você me disse, tudo o que sei e o que suponho. Tenho certeza que ele não gostará nada do que ouvirá. Depois não sei, só digo que se cuidem, pois meu pai não manda recado, manda fazer. E até nunca mais, seu verme asqueroso”.
E Carmen deu as costas e saiu praticamente sem enxergar nada em frente. O advogado tentou ainda falar, gesticulou, deu passos à frente querendo fazê-la ouvir ainda outras coisas, dizer dos reais perigos que ela estava passando, o que poderia lhe acontecer a qualquer momento. Iria dizer que tencionavam dar fim à sua vida o mais rápido possível, naqueles próximos dias, sem demora.
Mas nada. Ela seguiu firme e ele recuou, agora totalmente inerte, pasmo, sem ter nem feição nem palavra. A moça se distanciava, ele a olhava aflito, com os olhos lacrimejados, mas não conseguia ao menos se mover. Ela desapareceu de sua visão, entrou na residência, e ele continuou ali em pé, sem ter ao menos um vento para soprar-lhe os cabelos, por uns cinco minutos. Quem passasse e olhasse diria que ali estava uma estátua triste e solitária.
Contudo, depois desse tempo de imersão por dentro do homem que ele não era mais, eis que o espelho da perversidade reflete novamente no seu olhar. Não era mais Auto Valente, não era mais o apaixonado que há instante atrás revelava todo o seu amor, não era a pessoa preocupada com o outro e dando conselhos, pedindo por tudo que procurasse se proteger. Talvez o fétido lamaçal em que se envolvera fosse relembrado na passagem do vento maldoso, como a dizer que não adiantava querer mais ser outra pessoa, voltar atrás em nada, pois o seu compromisso dali em diante era outro. E ele sabia muito bem qual era.
Essa força medonha, maldosa, pervertida, atiçou-o na sua fragilidade e de repente já estava, de dentro do carro e mais adiante, discando o número do telefone do Deputado Serapião Procópio, o Caronte dessa triste e destruidora travessia.
“Deputado, a situação agora parece que poderá ser um pouco revertida. É preciso cuidado, pois ao invés de caçador o augusto e nobre parlamentar poderá virar caça, ao invés de andar perseguindo e amedrontando Carmen para que ela desista de seguir adiante com essa história de investigar o caso dos dois inocentes que estão na penitenciária por nossa causa, nós é que poderemos nos tornar vítimas. Acabei de encontrá-la e a mesma não pensou duas vezes em afirmar que amanhã mesmo estará visitando o pai e vai relatar todo o caso e dizer também das perseguições e ameaças que anda recebendo. Acentuou ainda que o seu nome será o primeiro a ser lembrado, principalmente porque conhece muito do que é capaz “o senhor do agreste”...”.
Ao ouvir isso, do outro lado o deputado estremeceu de cima a baixo, ficou sem um pingo de sangue no rosto, se mijou na calça, gaguejou para falar completamente amedrontado:
“Pelo amor de Deus, não, isso não, isso nunca. Se o pai dela souber que estou perseguindo a filha sou um homem morto, no mínimo capado. Aquele homem é chefe de bando, é cangaceiro, é sanguinário, é rico, é poderosíssimo, deve possuir mais de vinte pistoleiros nas suas propriedades. Se o velho souber estou arruinado, não terei mais sossego na vida, serei tocaiado e morto na entrada da assembleia, quando estiver na tribuna, em casa, no banheiro, em qualquer lugar. Faça alguma coisa Auto, faça essa moça mudar de ideia pelo amor de Deus. Sou um homem rico, já velho, gostaria de viver mais um pouco para aproveitar as benesses do que fui juntando honestamente ao longo dos anos...”.
O advogado ria porque sentia que o homem chorava do outro lado. Fingindo estar preocupado também, disse: “Mas agora não posso fazer nada. Amanhã mesmo ela vai viajar e começar a abrir sua cova. Quanto a isso não posso fazer nada...”.
Então ele explodiu do outro lado: “Pode sim, seu verme, pode sim. E faça agora mesmo alguma coisa. Fale com ela, faça com que evite que viaje e vá encomendar minha morte ao seu pai. Será melhor assim, porque senão eu mesmo tomarei as providências, e hoje mesmo!”.
E desligou o telefone sem que o outro pudesse argumentar qualquer coisa. Esse gesto desesperado do deputado deixou Auto Valente profundamente preocupado. Coisa boa a raposa velha não tencionava fazer. Como avisar a Carmen desse perigo iminente?
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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