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sábado, 8 de outubro de 2011

BALADA DO ARREPENDIDO (Crônica)

BALADA DO ARREPENDIDO

                                         Rangel Alves da Costa*


O pistoleiro havia sido tocaiado pela própria consciência. Depois de toda uma vida cometendo crimes e outras estripulias, deixando sempre rasgo de sangue no inimigo que perseguia e sem jamais deixar desfeita sem resposta, o homem agora tava numa situação de lascar.
Verdade é que agora estava todo se remoendo por dentro, angustiado demais, aflito de não se agüentar pensar em si mesmo, arrependido de tudo, e arrependido demais. Num misto de religioso de se benzer até antes de praticar o mal e desumano demais pelos que deixava estirados na estrada, agora havia decidido mudar de vida de uma vez por todas.
Passou boa parte da noite anterior ajoelhado na malhada do casebre, com o couro das dobras do joelho lanhados da pedraria cortante por baixo. Numa oração sem fim, chegando mesmo a ter os olhos lacrimejados, prometeu a todos os santos e anjos do céu que dali em diante jamais pegaria numa espingarda, rifle ou outra arma qualquer, pra tocaiar gente e matar a mando do Coronel.
Levar uma vida daquelas, como se limpar a arma, colocá-la em ponto de atirar e deitar no seu ombro como algo do próprio corpo destinada a fazer tanto mal, não faria isso mais nunca. Não tinha nem um mês que havia tocaiado o coitado do Miguelim. O homem não quis vender de jeito nenhum a parelha de bois ao Coronel, então este mandou acertar na testa, entre os olhos. Queria um tiro só, e assim foi feito.
Não fazia dois dias que estava passando a cavalo defronte a casa do finado e deu pra avistar duas coisinhas mais lindas do mundo, sujas, barrigudinhas, brincando na areia perto da porta. Talvez elas também tivessem olhado e avistado aquele estranho passando adiante. Mas não saberiam, por enquanto não, que aquele montado no animal era o matador de seu pai. Em cima daquele animal, passando pela frente da casa da família pobre e enlutada, era um verdadeiro animal asqueroso, um ser humano desprezível, um assassino covarde e barato.
Por isso mesmo que havia prometido, cheio de dor e arrependimento, que nunca mais em sua vida esperaria dias inteiros por trás de uma moita, nos escondidos de um pé de pau, pela sua vítima que mais cedo ou mais tarde passaria. E passaria despreocupado, talvez aboiando ou pensando na família, contente e planejando comprar uma novilha quando o feijão fosse batido e a safra vendida, sem saber que seria morto naquela hora.
Eita vida desgraçada, com fardos de erros pesados demais para se levar nas costas. Nem lembrava mais quantos já havia derrubado na estrada, nas casas invadidas ao anoitecer, assim que o homem saía para dar bom dia ao amanhecer na roça. Era só mirar e apertar o gatilho e pronto, o trabalho já tava feito e bem feito. Até aquela data nenhum mandante, coronel ou latifundiário havia reclamado dos seus serviços. Cobrava caro, mas pagavam quanto queriam. E muitas vezes apenas com a ameaça de que fechasse o bico senão era ele que ia engolir sete palmos de terra.
Mas o diacho é que logo cedinho, depois da noite envolta em penitências e promessas, tudo começou a desandar, ameaçando o que já estava se obrigando por devoção, que era não mais fazer aquele tipo de serviço sujo. E isto porque riscou um cavalo na porta e um cabra dizendo que o Coronel desejava lhe falar com urgência porque tinha um servicinho inadiável. O homem havia cuspido no chão e disse que antes de secar era pra ele estar lá com a melhor arma que tivesse.
Recebeu o recado em silêncio e assim ficou, num emudecimento doloroso. Sentia o mundo querer desabar, a cabeça estourar sem saber o que fazer, o momento testando como nunca sua força. Correu no quartinho, se ajoelhou e chorando fez uma ligeira prece. Acendeu uma vela, se benzeu e foi selar o cavalo. Depois pegou a arma, deitou o aço envelhecido pelo peitoral e saiu num galope só. Mais adiante fez o cavalo parar e ficou olhando pra trás por uns três minutos, se despedindo de tudo.
Dava adeus a tudo porque sabia que não voltaria ali nunca mais. Iria dizer nas fuças do Coronel a decisão que havia tomado e por isso sabia que não retornaria ao seu barraco. E dito e feito. O Coronel ouviu o que ele tinha a dizer e não disse nada, apenas piscou um olho pra outro pistoleiro que estava na porta.
Saiu em disparada sem saber nem pra onde ia. Mas não foi longe não. Morreu tocaiado adiante, no caminho de volta pra casa.




Poeta e cronista
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