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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O VELHO E O VENTO (Crônica)

O VELHO E O VENTO

                                       Rangel Alves da Costa*


O entardecer sempre foi amigo das recordações, saudades e relembranças. Da janela aberta, a jovem suspira seus devaneios apaixonados; enquanto varre a porta da casa, a mulher bate asas na mente e sai voejando; o velho, mais adiante, sentado na pedra amigueira, esperava o vento chegar para o pé de prosa.
Velho amigo da tarde, amigo da pedra adiante na malhada, amigo daquele momento de solidão, muito mais amigo ainda do vento que chegava para lhe falar e ouvir. Cenário mais que plangente, eis que quem o avistasse ali diria que já conversava sozinho num tanto dizer da idade. Broco, diriam; sábio, contestaria.
Na afetação pela idade ou sabedoria pela experiência, só uma verdade: era apenas ele e o seu estranho mundo. Daí não restar dúvida, aquele senhor era lúcido, porém numa lucidez pouco compreendida pelos mais jovens e todos aqueles que insistem em desconhecer as razões da idade.
Ora, se era de se estranhar aquela diferente clareza mental e precisão de ideias contidas no velho, era por desconhecimento dos pensamentos e ações que movem os sábios, os sensatos, os prudentes. Ali o livro mais velho, o salmo, o sermão, o evangelho da vida e do viver.
Esse desconhecimento do mundo próprio em que vivia, certamente o afastava do convívio de muitas pessoas, até mesmo familiares mais próximos. Era uma solidão forçada, porém vivenciada com o encantamento daqueles que sabem valorizar os momentos de reencontro consigo mesmo e perante seres que dificilmente os outros ousariam dialogar.
Esses outros seres, elementos que já faziam parte do seu cotidiano de aparente solidão, já podiam ser vistos como os seus únicos e verdadeiros amigos. Era coisa realmente de não se acreditar, mas cumprimentava a tarde, ainda que sombreada ou chuvosa, e dela ouvia sempre que fazia o melhor que podia para lhe agradar.
Do mesmo modo, cumprimentava a pedra, passava a mão pelo seu semblante, brincava fazendo um cafuné, e mesmo querendo continuar fechada e murrenta, ela não deixava de considerar a presença agradável do amigo e sempre dizia que ela, por ser pedra, suportaria quase tudo ainda por muito tempo, mas ele se cuidasse para não virar pó antes da hora marcada. E dava um sorriso de pedra, tão gargalhado por dentro e tão verdadeiro por fora.
Com o silêncio do entardecer não era diferente. Difícil, muito complicado falar com o silêncio, vez que nem sempre ouvia resposta alguma, a não ser o eco enganador do que dizia, mas ainda assim brincava açoitando que aquela tranquilidade toda era falsa porque estava esperando o vento namorador aparecer adiante. E o silêncio zunia raivoso, pois não gostava que lhe atiçasse coisas do coração. E logo com o vento, aquele traquina galanteador.
E o vento, o bom e velho vento, talvez o melhor amigo daquele senhor, despontava lá por cima da serra, vindo devagar, matreiro, manhoso, parecendo brisa. Era o seu jeito de ser, assim mesmo imprevisível, tantas vezes apenas alvoroço, quase sempre trazendo novidades. Chegava e ia logo soprando na cabeleira do amigo como um afago, um gesto de carinho e perguntar se queria ouvir ou falar.
Quando sentia que os olhos do velho - igual rio antigo que vai perdendo sua perenidade - se perdiam distantes num fio d’água aflitivo, ele se adiantava em soprar coisas boas para buscar uma feição mais alegre no amigo. E dizia que ia ficar uns tempos sem aparecer por ali, ia soprar noutras solidões mais solitárias, porém muito mais autêntica do que aquele silêncio ali, que amava o vento e fingia que nem sentia a sua presença.
E o velho ouvia a brincadeira e sorria, jogava folhas no ar e o amigo mostrava sua força ao silêncio. Mas noutro dia o velho perguntou se ele podia dizer se lá no lugar de onde vinha tinha como aceitar um velho que também queria se transformar em ventania e sair pelo mundo afora em busca do seu destino. Soprando, soprando.
O vento até parou de soprar de tanta tristeza que ficou com as palavras do amigo. O que fazer para mostrá-lo que só pode ser vento quem ainda tem muita força, quem não se cansa, quem não se incomoda de estar em lugares estranhos e desconhecidos? Mas enfim respondeu:
Vou perguntar. Mas se disserem que não serei pó em seu lugar. E depois pode me soprar amigo, pode me soprar!




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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