*Rangel Alves da
Costa
E agora me
vem à memória aquele entardecer sertanejo e o aroma de café torrado subindo
pelo ar. Era a delícia de Dona Lídia, na Praça da Matriz, que a todos encantava
quando sua chaleira começava a ferver.
Tantas e
tantas vezes que fui lá implorar um tiquinho para saciar minha sede do negro
sabor. Implorar por que logo a casa estava cheia com gente esperando o seu
tiquinho. Mas dava para todo mundo, mesmo que nova remessa tivesse que ser
providenciada.
E agora,
de xícara à mão e um café qualquer, relembro Dona Lídia e tantos outros
conterrâneos que já partiram em adeuses de lenços molhados. E entre um
cafezinho e outro vou a tudo revivendo com uma saudade de filho ausente.
Sem dúvida
que é entre um cafezinho e outro que as recordações se avivam no pensamento. O
café desperta e a memória vai chamando o passado distante, o ontem e até o
instante atrás. Reflexões surgidas entre goles e recordações.
A verdade
é que muito se faz entre um cafezinho e outro. Alguns fumam cigarro, charuto ou
cachimbo. Alguns esfarelam na boca a bolacha que foi mastigada como companhia.
Outros bebem um pouco de água. Tanto faz.
Tanto faz
por que o cafezinho passa a ter existência própria depois de sorvido. Anima,
revigora, fortalece, e chama outro cafezinho quando já sente esvaindo sua
permanência. E entre um cafezinho e outro o dia se alimenta do oloroso sabor.
Também
vivo entre um cafezinho e outro. Ou cafezão e mais outro e outro, pois sempre
forte e sem açúcar. Sou ávido por café, eis a verdade. Tanto assim que minha
madrugada somente passa a ser vivida depois da primeira xícara.
Mas
prefiro chamar de cafezinho. Bebo sempre em xícara pequena, então soa melhor
chamá-lo de cafezinho. E de repente me vejo esquentando a água para depois
derramar sobre a xícara já com as duas pequenas colheradas de café solúvel.
Não gosto
de café assim, mas não há outro jeito. Creio ser muito pior o café em pacote,
que sempre desce muito fraco e sem qualquer gosto. Nas ruas ainda encontro café
forte nas máquinas de lanchonetes e padarias mais antigas. Mas são raridades.
No centro
de Aracaju, por exemplo, onde no passado da José do Prado Franco a escolha era
difícil ante tanta marca boa de café pelos balcões, agora somente duas ou três
opções. Ainda vale a pena um cafezinho numa lanchonete do calçadão, mas
principalmente na antiga e pitoresca Luzitânia.
O bom café
é sentido ao longe. Tão reconhecível é o cheiro do bom café que nem precisa
observá-lo descendo na xícara para certificar sua qualidade. Verdade que quanto
mais negro, mais encorpado e oloroso melhor, mas o aroma já garante sua
qualidade e sabor.
De vez em
quando, quando estou de xícara à mão, relembro os antigos e verdadeiros cafés
de bule, de chaleira, de aromas e gostosuras. Café batido em pilão, peneirado
no meio do café e preparado em fogão de lenha. Coisa das antigas vovós. E
quanta saudade.
Muita
gente sertaneja do passado se negava a colocar na boca café de mercearia, já
vendido em pacote. Dali apenas o café em grão, ensacado, para depois ser batido
em pilão e preparado ao modo do quintal. Por isso tanta gostosura naquelas
manhãs e noites sertanejas.
Como não
posso voltar no tempo e é muito difícil encontrar o café ainda batido em pilão,
então procuro me contentar com aquele que possa dispor. Somente a memória aromatiza
a xícara com as lembranças passadas.
Mas seja
de que jeito for, é entre um cafezinho e outro que muito acontece na vida.
Principalmente na pessoa que segura a xícara e junto dela vai procurar um local
ideal para beber aos pouquinhos. É como um ritual de experimentação e encontro.
De afeto e abraço.
No meu
caso, entre um cafezinho e outro me torno poeta, escritor, filósofo, sábio,
profeta, viajante no tempo. É que ao chegar aos lábios e ao escorrer pela boca,
o café acaba me transportando para situações jamais imaginadas em outras
circunstâncias.
Caminhando
para perto da janela, ao longe avisto ainda o meu sertão. Ruazinhas de areia e
pedra, casinhas miúdas e cadeiras pelas calçadas, vizinhas conversando de
vassoura à mão, um velho sertanejo que pinica seu cigarro de palha num tronco
mais adiante.
A festança
dos meninos debaixo da chuva, todos nus e felizes demais no viver. As correrias
por cimas dos lamaçais e as fugas em direção ao riachinho. Fugir dos olhos dos
pais para tomar banho nas águas do riachinho era desafio e experiência única na
infância sertaneja.
Seguir
ainda em direção à casa de Dona Lídia. Como quem não queria nada, arranjando
uma desculpa de encontrar Zé Veinho. Mas nada disso. A intenção mesmo era pedir
um golinho daquele café que ainda hoje não me sai da memória. E que até me faz
lacrimejar.
Escritor
Membro da Academia de Letras
de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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