*Rangel Alves da
Costa
O cangaço
se vestia de sol e de lua, bebia do suor, do sangue e de água de qualquer
fonte, mas se paramentava com vaidoso esmero. Descendo pelo corpo recoberto de
brim azulado ou caqui, após o lenço de seda dobrado, toda uma parafernália que
chegava a pesar trinta quilos. Cantis, embornais, cartucheira, punhal,
armamento, anéis e moedas de ouro, verdadeiras relíquias saque
adas das
portentosas propriedades, ou mesmo recebidas como presentes. E na cabeça o chapéu
meia-lua com três estrelas, sendo ao centro a maior, geralmente encimando um
circulo bordado.
Ao
contrário dos demais bandoleiros - geralmente sujos e esfarrapados pelas fugas
e correrias -, os homens do cangaço se esmeraram no vestir e na apresentação.
Houve uma estética tão própria do cangaço que se poderia afirmar ditada por
algum profissional da moda. Mas não, pois tudo nascido da imagem que Lampião
desejava para o seu bando. Na sua concepção, o modo como seus homens se
apresentavam refletia nos próprios objetivos de luta e de existência do grupo:
não eram bandidos, mas homens decentes empunhando armas contra o regime
opressor.
Com
efeito, naqueles ermos sertanejos de pobreza e desolação, a chegada dos
cangaceiros causava espantos indescritíveis. Homens cabeludos, com roupas
enfeitadas, muitos usando óculos, joias e brilhos pelos dedos, perfumes em
profusão, verdadeiros artistas das caatingas. E não foi por outro motivo que
tantas mocinhas se apaixonaram por aqueles rudes e graciosos homens surgidos em
meio às veredas empoeiradas. Também a fama e a periculosidade tanta atraíam com
repulsavam os cabras de Lampião.
O próprio
Lampião era um verdadeiro artista. Mesmo andando ou correndo de canto a outro,
jamais deixou de cuidar de sua imagem. Neste sentido, não só propagou o
marketing do cangaço como um meio necessário de luta como cuidou da aparência
de todo o grupo e muito mais da sua. Ora, tanto cangaceiros como cangaceiras
usavam e abusavam de roupas enfeitadas - muitas vezes espalhafatosas -, de brilhantinas
e perfumes, de anéis e colares, de tudo aquilo que lhes chegasse às mãos como
enfeite.
Quem já
avistou fotografias dos cangaceiros - principalmente de Lampião e Maria Bonita
- logo percebe a preocupação com a aparência, com a postura, com o modo de ser
e viver. Retratos existem onde a rainha e o rei do cangaço mais parecem em
suntuosos jardins, com poses lendo jornais e ao lado dos cachorros de
estimação. Lampião sempre fez questão de ser fotografado apontando armas, lendo
cartas, jornais e revistas. As fotografias coletivas objetivavam principalmente
mostrar a união e a beleza do grupo.
Lampião
jamais permitiu que Benjamin Abrahão, seu fotógrafo oficial, o retratasse, e
mesmo a sua gente, em situação que não fosse enobrecedora, festiva,
demonstrando valentia e destemor. Essa preocupação com a imagem objetivou
desmitificar o mundo cangaceiro como um meio ruim, triste e sofrido. Daí que
muitas são as fotografias e filmes de cangaceiros dançando, em prontidão no
meio do mato, dialogando alegremente. Não há, pois, das lentes de Abrahão, um
só instantâneo onde estejam retratados a dor e o sofrimento.
Além
destes aspectos de propagação pessoal e de grupo, outros fatores permitiram
conhecer Lampião como um diferencial entre todos aqueles que se embrenharam pelas
matas para fazer justiça pelas próprias mãos. Reconhece-se desde muito que o
líder cangaceiro também se esmerava no cuidado espiritual, a partir da
conservação e preservação de uma fé tipicamente nordestina: a devoção como guia
em cada ação.
Neste sentido,
a mão cangaceira que puxava o gatilho era a mesma mão que ostentava o rosário
de contas. O mesmo olho que divisava o mundo perigoso adiante era o olho que
também se voltava para a prece guardada no embornal. O coração angustiado pelas
durezas e incompreensões da vida, pelas forças inimigas no seu encalço e pela
luta pelo dia seguinte, era o mesmo peito que ardia em sentimentos e culpas, em
silêncio e gritos de homem comum. Sim, pois Lampião era homem de fé e de
oração, era pessoa temerosa dos castigos divinos, era ser humano que também se
ajoelhava aos céus proteção.
Naquele
embornal de Lampião, todo enfeitado de quinquilharias douradas e tão ciumado e
protegido pelo seu dono, uma folha encardida de tempo e desgastada pela leitura
de vez em quando se abria perante aqueles olhos quase cegos de um olho. A
oração da proteção, a oração para fechar o corpo, a reza contra os labirintos
da vida. Não aquela ensinada por seu santificado Padre Cícero, mas aquela
escrita de próprio punho nas relembranças que o homem nunca deve se afastar dos
ensinamentos sagrados.
Embornal
cheio de pecado e de fé, tomado de respingo de sangue e de água benta,
envernizado pelo destemor e pela devoção, mas sempre um cantinho onde o homem,
ainda que o Capitão Lampião, sempre levava guardados seus alentos e esperanças.
E nisto também uma verdade: o líder cangaceiro nutria vontade imensa de um dia
largar da guerra e da arma e viver na paz o resto de seus dias. Mesmo sabendo
da impossibilidade de assim acontecer.
Escritor
Membro da Academia de Letras
de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário