*Rangel Alves da
Costa
Toicim -
era esse o apelido do cabra - não tinha mais nada a perder na vida. Nem vida
tinha, segundo ele. Ora, não era vida aquilo que levava, emboscando, tocaiando,
matando e matando. Mais que os dedos das mãos e dos pés.
Por isso
mesmo que já puxava o gatilho como se estivesse num trabalho qualquer. Treco,
treco, treco, e pá! Tufo de mato voava por todo lado, a fumaça levantava
ardente, depois mais treco, treco. O serviço tava feito.
Mais
adiante, por cima da terra nua, no meio da estrada de ponta de espinho e pedra,
ainda sangrando, o corpo varado de balas. Já está morto, mas é preciso matar
mais. Por isso que o jagunço dá três passos adiante, já fora do tufo de mato, e
treco, treco, pá!
Toicim
some no mato no mesmo instante. Leva no bolso a orelha do desditado. O seu
patrão precisa saber do serviço feito. A orelha ensanguentada é a prova maior
que a tocaia foi bem feita. Mas não se avexa muito no meio da mataria e logo
pressente o pior.
Lança mão
da arma, tenta se ajeitar. Mas é tarde demais. Um balaço surgido não se sabe de
onde lhe atinge bem no meio da testa, pouco acima das sobrancelhas. E com uma
violência tal que o corpo é jogado por cima de macambiras. Não é um preá morto,
é um jagunço.
Aquele que
atirou não é diferente do atingido, do morto. É da mesma laia, do mesmo saco,
do mesmo ofício de covardia. Também é um matador de aluguel, também um jagunço,
um pistoleiro a mando de morte. Ou da morte.
Pois morte
também seria outro nome para o potentado assassino, o coronel matador pelas
mãos de outro covarde. O coronel que de sua varanda cospe e diz que antes de o
cuspe secar já quer que o seu desafeto esteja crivado de balas. O mais medroso
dos algozes.
Assim,
quase num só instante e dois defuntos de mesmo percurso. O tocaiado por Toicim
jazendo no meio do tempo, com o corpo já esfriado e à espera de um viajante
qualquer. O seu matador também estrebuchado por cima de macambiras, de olhos
arregalados.
Logo os
urubus começam a voar mais baixo, a se juntarem em rasantes em torno dos restos
mortos. E descendo vão até a primeira bicada. Mais outra e outra. A pele
dilacera, as tripas ficam expostas, a fedentina já é insuportável. E como fede
esse mundo de coronéis e jagunços.
Não demora
muito e chegam os carcarás, gaviões e outros carnicentos sempre à espreita.
Brigam entre si, querem abocanhar os restos putrefatos, as entranhas de um
mundo covarde, sangrento e cruel. Já não há mais sangue, apenas o lodo nojento
da violência.
Triste
mundo de ser tão assim. Sem valia de homem, sem valia da vida, sem valia de
nada. Enquanto os vermes passeiam em cima dos mortos, outras ordens de mortes
já são dadas pelas varandas dos casarões. E o jagunço vai fazer apenas o seu
serviço.
Há nas
mãos desses homens os dedos da morte. São pedras que se movem para esmagar. Há
nos olhos desses homens a insensibilidade do mundo. Não avistam outra coisa
senão a insignificância. Tanto faz ser pessoa como bicho do mato. Os olhos
apenas miram e as mãos se movem para matar.
Que mundo
é este de tamanha covardia e insensatez? Que mundo é este de cuspir no outro o
fogo vil? Que mundo é este de estradas e veredas tomadas de urubus e podridões,
sem que nada se possa se possa fazer senão fugir dos ódios coronelistas? Um
mundo que existiu, mas que não desistiu completamente.
Pelos ares
e arredores campeiam as podridões desse mundo. Jagunços e urubus são rapinas do
mesmo tenebroso ninho. O coronel os alimenta com a sina injusta dos outros, até
de um pobre coitado cujo erro na vida foi levar estaca nas vizinhanças do
latifúndio coronelista.
Não sobre
ninguém. Jagunço morre por jagunço, urubu morre envenenado de podridão, coronel
morre pela mão do coronel. Somente a história fica para contar os mortos, porém
sentindo-se enojada pela fetidez desse tempo de tocaias e emboscadas.
Mas por
que a preocupação em mandar tocaiar e matar Toicim, o jagunço? Certamente que
coronel não vai perder tempo em mandar um dos seus pistoleiros nos passos de
outro pistoleiro, pois sua preocupação maior é dar cabo daqueles que ameacem o
seu poder.
Mas Toicim
tinha que morrer. Bem assim como morreu o pistoleiro que o matou, Tocim tinha
que morrer. Também morreu pelas mãos de outro jagunço aquele que varou de balas
o matador de Toicim. Mortes após mortes, por isso que Toicim tinha que morrer.
Toicim era
testemunho vivo de tantas maldades. O seu assassino igualmente conhecedor de
todas as perversidades. O matador deste também. E o coronel? Muitas mortes num
só. Pela bala de seu jagunço, pelo seu poderoso inimigo, pelo seu próprio
veneno.
Um mundo
de cascavéis, de jararacas, de cobras peçonhentas. Um mundo que existiu. Um
mundo que ainda persistir em existir.
Escritor
Membro da Academia de Letras
de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Escritor Rangel Alves da Costa, tudo escrito pelo nobre escritor é mais um aprendizado para quem ler. Parabéns!Sou fã dos seus trabalhos.
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