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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 15 de julho de 2010

OS OLHOS DA FOME (Crônica)

OS OLHOS DA FOME

Rangel Alves da Costa*


Dá até medo de falar, mas quem já viu a fome diz que ela é horrível, a coisa mais feia do mundo, esquisita, coisa de fazer gente chorar e gritar. O corpo dessa famigerada é totalmente disforme, contorcido e retorcido, com os ossos pontiagudos e querendo sair do resto de pele ressequida. Quem vê o corpo pensa que enxerga um esqueleto ainda vivo. No lugar da boca surgiu um estranho labirinto desdentado. O céu que toda boca tem, nessa se transformou num abismo. O quer dizer do sorriso da fome?
Contudo, tudo o que foi dito acima com respeito à feiúra feia e esquisita demais da fome é ainda tudo muito bonito se comparado aos olhos da danada, da maldita, da medonha fome. Dizem que Dante ao escrever sobre o inferno na Divina Comédia se eximiu de falar sobre os olhos dela porque não tinha como descrevê-los em todo o seu estupor. Os autores regionalistas do modernismo, ao abordarem as secas e suas consequencias nos seus romances, não falam sobre os olhos da faminta. Não tinham como expressar com palavras o indescritível.
Na verdade, até se pode afirmar que são muitos os olhos da fome. Como são diferentes nos rostos das pessoas, variando do negro, azuis, verdes ou castanhos, do mesmo modo estão estampados nas faces da devoradora. Só que, diferentemente de cores, o que se vê são olhos mais mortos, mortos ou menos mortos. Contudo o que mais sobressai nisso tudo e mais amedronta são os jeitos como essas mais mortes ou menos mortes estão expressadas: terror, sofreguidão, cegueira gritante, abismo negro, um resto de coisa que se avista ao longe e que quer chorar e gritar sem conseguir um único dizer.
Para onde olha os olhos da fome, o que pretende enxergar, qual alimento quer ver, qual mão estendida deseja encontrar? Dizem que a retina ora opaca, ora sanguínea, despedaçada feito cristal quebrado, mira sempre num mesmo lugar, sempre para algum lugar na distância, procurando alcançar o que está por trás do véu negro que é o sonho do cheiro, da cor, do sabor, do alimento, da carniça, do excremento, da podridão. É assim mesmo, pois aquilo que só enxerga uma só coisa tem que se contentar com o que sofreguidamente imagina ver.
Dizem que os olhos da fome dos refugiados das guerras e das guerrilhas só enxergam para o alto, só olham para o alto, vivem esperando o que venha de cima, o que seja jogado pelos aviões dos organismos de ajuda humanitária. São olhos de fome vermelhos, feridos pelos estilhaços, pelas balas que esvoaçam à sua frente. São olhos de fome doentes, agonizantes, desesperados, querendo mais do que nunca fechar para não sofrer mais. Os que não enxergam mais ouvem o barulho dos que fogem dos inimigos que avançam e pensam que é chegado o momento do alimento ser jogado do alto. E ficam ali esperando até morrer.
Dizem que os olhos da fome da África desistiram de existir. Os últimos olhos que quiseram enxergar o alimento feito de barro e o grão que restou pelo chão do que foi doado foram comidos pelos mosquitos. Os mosquitos africanos também sentem fome, e como não têm do que se alimentar começam a cercar os olhos da fome e de repente estão invadindo a retina e fazendo moradia no que restou no olhar. Depois disso, aqueles olhos da fome aparecem na televisão e nos jornais para que os outros olhos não queiram ver aquela realidade.
Dizem que os olhos da fome da miséria povoando os sertões nordestinos, as favelas, os alagados, as marquises e embaixo de pontes conseguem enxergar bem o que querem, pois mesmo que fragilizados ainda estão vivos e reconhecem seus algozes, aqueles que lhes tiram o pão e prometem manjar dos deuses. Enxergam e choram, são olhos ressequidos e ressecados, profundos e saltitantes, que sempre se espantam quando encontram o de comer. Fubá de milho é colírio, bolachão é óculos, farinha com feijão é lente de contato. O como ficam bonitos esses olhos enfeitados para a morte talvez.
Dizem que no sertão, antes de morrer de fome uma criança sonhou que tinha os olhos lindos, esverdeados como a água do mar e grandes como a lua cheia. E enxergava o que queria e gostava: bolos, doces, galinha assada e sarapatel. Até que enxergou o que não gostava: um gavião enegrecido que vinha de bico faminto bem em direção aos seus olhos.
Tudo isso é verdade e juro por esses olhos que a terra há de comer.





Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Toninho disse...

Rangel este olhos da fome, espalhado por todos os cantos tao bem descritos por voce,causa na gente sempre aquela repulsa, aquela revolta que um dia Vandré recitou no ápice de sua angustia contra todo o sistema,que fechava seus olhos lindos para estes olhos.Só posso aplaudir esta maneira aberta,descritiva cultural que voce usa em seus textos.