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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

CANGACISMOS



*Rangel Alves da Costa


Afora as teorias conspiratórias envolvendo a vida e a morte da bestialidade humana chamada Adolf Hitler, certamente que não há outro fenômeno mais cheio de tramas, de teses e teorias, de mentiras e meias verdades, e de distorções e ilusionismos investigativos, do que o cangaço.
O cangaço é, por assim dizer, o celeiro do ainda e eternamente indecifrável. Ora, um mundo de estudiosos e pesquisadores desde muito se debruça sobre o tema mas, ao invés de consensualização nas descobertas, o que se tem é um surgimento ainda maior de labirintos. Daí surgirem as teorias mais absurdas, as teses mais indefensáveis, os escritos mais vergonhosos, as conclusões mais vexatórias.
Sim, muita coisa boa tem surgido também, muita pesquisa há de ser reconhecida como essencial ao entendimento do fenômeno. Porém, ante o emaranhado de livros, artigos e outros escritos, uma obra respeitável acaba, muitas vezes, sendo apenas mais uma tentativa de explicar o que nunca se chega a consenso. E tanta inovação vai surgindo perante o mundo cangaceiro que até parece que muitos já não se preocupam mais com a verdade histórica, mas tão somente com o prazer da invencionice e a propagação de inverdades.
Eu também sou pesquisador do cangaço, escrevo sobre o cangaço, enveredo na mata atrás de cenários cangaceiros. Meu trabalho de pesquisador está muito mais voltado à pesquisa de campo e ao resgate de localidades onde se deram as vinditas de sangue, envolvendo batalhas entre cangaceiros e volantes, emboscadas, mortes, traições, crueldades e outros fatos, que embora estarrecedores fazem parte da história. Muito eu li sobre o cangaço. Já procurei saber e compreender o básico, de modo que agora evito lançar o olhar em qualquer tese nova que vá surgindo. Agora prefiro entrar no mato para depois relatar como faço agora:
No meio do mato, sempre acompanhado por um cachorro, nas entranhas da Fazenda Coruripe em Poço Redondo, sertão sergipano, apontando o local onde foi enterrado o cangaceiro Canário em 38, morto à traição pelo também cangaceiro Penedinho. Enterrado sem a cabeça, vez que a mesma fora levada como troféu macabro por Zé Rufino, terrível e temido caçador de cangaceiros. É por isso que Totonho Catingueira dizia: “Vosmicê num pisa no chão de Poço Redondo pra num pisar num rastro de cangaceiro ou de volante. Tomem num anda num lugar pra não sentir um vurto de cabra estirado. A mata aina zune. Aina hoje, eu mermo só entro no mato com medo daquelas aparição, daqueles homens de sangue nos óio e venta sortano fogo. Poço Redondo num era nem pra se chamar Poço redondo, mai Poço do Cangaço. O cangaço inté parece que foi todim aqui. Ali foi um fogo, acolá foi uma emboscada, mais adiante um acaba-mundo da gota serena. É cuma aina a sombra de Lampião tivesse aqui, tomem de Corisco, de Zé Sereno, de Corisco, de Mané Moreno e tudo mais. É cuma aina a gente ouvisse a bala zunindo e o grito de dor. Menino, foi um escorrimento de sangue de num acabar mais. Eu mermo aina sinto o cheiro suarento do cangaço e o fedor da volante. Pro todo lugar existe cangaço, e aina como se o medo deixasse o cabelo em pé. Conheci a Véia Gerusa que mermo adespois da morte de Lampião ainda continuava com saco arrumado pra correr a quarqué hora. O maluquim Oreba continua dizeno que toda noite sonha com a cangaceirama e que Lampião virou rei com coroa e tudo, e que seu reinado é pelas banda da Maranduba, debaixo de um daquele sete umbuzeiro. Sei não, viu. Sei não... Eita Poço Redondo das história cangaceira. Mai vou dizê uma coisa, sem medo de errar: se as morte do cangaço fosse todinha marcada em cruz, entonce Poço Redondo todim era um cemitero. Pro todo lugar haveria de ter uma cruz, aqui debaixo dos meus pé, ainda debaixo do seu...”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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