SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 26 de março de 2011

PEQUENO LIVRO DAS COISAS GRANDES (Crônica)

PEQUENO LIVRO DAS COISAS GRANDES

Rangel Alves da Costa*


Quando abrirem a porta pra mim e eu tenha de sair sem poder me despedir - porque é a vida que quer assim e não a gente -, partirei feliz porque não levarei comigo aquilo que quero que todos saibam e conheçam.
Tudo escrito num livro, igual bula inteligível, é só abrir página por página e ir lendo pequenas notas de um grande, de um imenso amor pela vida.
Após o folhear, será possível compreender que as coisas mais simples são as mais importantes e nos pequenos gestos estão os grandes significados para uma existência. Sendo assim, como amigo e conselheiro digo:
Deixem minha gaiola no lugar e de porta aberta. Gaiola foi feita para enfeitar a casa e passarinho para passarinhar. Deixe a janela de casa aberta que passarinho amigo sabe chegar e partir.
Quando chover nunca feche a casa toda. Ao menos a janela da frente tem de ficar aberta para a chuva entrar, para o vento bater e aquele cheiro de terra prenhe de sertão invadir todo lugar. Se a gente espera tanto a chuva, então deixe ela entrar um pouquinho.
Quer falar com os passarinhos e animais do mato logo cedinho? Então corte um mamão maduro em pedaços e espalhe pelo terreiro, eles também gostam de melancia e abacaxi. Esfarele pão e jogue no ar, pegue alpiste e água e coloque pelos cantos. Não espante ninguém, apenas converse...
Água de moringa fica geladinha e saborosa se dormir perto do vento da noite. Nunca sirva a ninguém água de moringa se a pessoa não estiver com bem sede e nem despeje o líquido em copo de vidro ou de plástico. Água de moringa só tem sabor e mata a sede se for servida em caneca de alumínio bem limpinha, daquelas que chegam a brilhar.
Pegue a água do pote, coe bem coada, depois despeje no filtro e deixe lá para anoitecer. No outro dia, assim que o barro do filtro estiver como que orvalhando nem se preocupe que a água não vai pingar, mas apenas dizendo que você coma um pouco de doce de leite cheio de bolas, depois sente na cadeira de balanço com a caneca de água na mão. Se quiser sonhar está na hora boa...
Nunca fui tão sozinho na vida, por isso todo carinho com tudo que faz parte da minha história: meu baú de cartas e fotografias; as roupas que não doei porque gosto, ainda que estejam sem uso; minha agenda, meu diário, meu caderninho de anotações; meu pequeno oratório, minha bíblia, os meus santos, minhas lembrancinhas religiosas, minha fé; meu ferro de engomar a brasa, meu pilão, meu pé de máquina pintado, meu candeeiro e minha lamparina; meu crucifixo e minha lua. Por favor, nunca deixem que sumam com minha lua...
Se não puderem visitar todas as maravilhas do mundo, ao menos tente visitar a igrejinha quando ela estiver toda silenciosa no barulho dos anjos; vá até a montanha e converse e pouquinho com Deus; vá até o rio que passa na sua aldeia e se banhe com as águas que são sua vida; coma frutas no mato, beba água da fonte, faça um ramalhete de flores do campo e converse sozinho quando estiver de braços abertos em meio ao milharal verdejante.
Deixe o cofrinho de barro com moedas antigas para o seu neto, deixe os livros que você mais gosta para o seu neto, deixe o cavalinho de pau e o carrinho de madeira para o seu neto, deixe um envelope cheio de selos antigos para o seu neto, deixe uma fotografia sorrindo para o seu neto, deixe pais para o seu neto, deixe as melhores lições para ele.
Não deixem que cortem a árvore que foi plantada no jardim, nem que rasguem os originais do livro que escrevi e que estão guardados numa dessas gavetas. Se cortarem a árvore e rasgarem o livro, é a prova que também não terei filhos para deixar, pois são os filhos que devem preservar a memória dos seus que se vão.
Agora quero uma xícara de café torrado e batido no pilão, bem quentinho e com açúcar da terra. Bolo só se for de macaxeira ou de leite, mas preferia mais tarde um pratinho de coalhada da fazenda. Depois coloquem a minha rede ali na varanda que preciso descansar.
Só me acordem se for para o bem; só me acordem se for para o bem. E faça antes uma oração bem bonita. Deus disse!




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Hubner Braz disse...

Rangel,

Amei seus poemas, cronicas... são belos, e toca quando lemos com os olhos dos sentimentos.

Parabéns...

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