*Rangel Alves da Costa
Tais
locais se tornam centros de preces, de promessas e de busca de contato com as
forças sagradas. E também locais de recebimento de ex-votos (objetos pessoais
depositados como prova e agradecimento pelas graças alcançadas).
Por isso
mesmo que não raro, pelas vastidões sertanejas, debaixo de baraúnas, umbuzeiros
e ou mesmo num pé de pau já carcomido de tempo, o encontro com cruzes ladeadas
por miniaturas talhadas de mãos, de cabeças, de pernas ou outros membros. São
as provas da fé, da promessa e da crença na cura.
Em tais
locais, também o sinal de que ali, no passado, ou ocorreu uma tragédia ou sua
vítima jaz entre as areias de seu chão. Assim ocorreu, por exemplo, nas Cruzes
dos Soldados, na Estrada Histórica Antônio Conselheiro (Estrada de Curralinho),
em Poço Redondo, sertão sergipano.
No local
onde os inocentes soldados Zé Vicente e Sisi foram tocaiados e mortos pelos
subgrupos de Corisco e Mané Moreno, como cega vingança pela morte do cangaceiro
Pau Ferro, a qualquer momento podem ser avistadas as cruzes como marcos da
tragédia, mas também os ex-votos ao lado deixados. São muitos os locais dessa
instigante fé sertões adentro.
Outro
exemplo, também em Poço Redondo, pode ser avistado em frente à igrejinha de São
Clemente, na localidade quilombola de São Clemente, cuja antiga sede da
propriedade (ao lado da capela) foi palco de uma tragédia de terríveis e
indescritíveis dimensões.
Neste
local foram mortos, pelas sangrentas mãos de bandoleiros liderados pelo
impiedoso e perverso cangaceiro Gato, dois sertanejos: João (o pai Clemente e o
irmão Doroteu já haviam sido mortos há instantes atrás na Fazenda Pelada) e Zé
Bonitinho.
Saliente-se
que estas foram as duas últimas vítimas de uma chacina, num só percurso de ódio
e maldade levado a efeito pelo citado Gato, bem como seus acompanhantes, os
cangaceiros Azulão, Medalha, Cajueiro e Suspeita.
A
cangaceirama, após o sumiço de umas selas e uns arreios enterrados nas proximidades
da Fazenda Couro (no lado baiano, logo após um riacho que faz divisa com
Sergipe), recebeu ordens de Lampião para seguir no encalço dos responsáveis
(Temístocles e um amigo) pela entrega dos couros à polícia baiana.
Mas toda
perseguição ocorreu no lado sergipano, nas terras de Poço Redondo. Ordens
recebidas, Gato e seus sequazes partiram com odiosa cegueira e sangrenta
voracidade. O problema foi que a vingança passou a ser perpetrada contra
qualquer sertanejo que fosse encontrado sozinho ou em suas casinholas de meio
de mato.
Sete sertanejos
foram mortos, sendo que dois destes na Fazenda São Clemente, último ponto de
sangria da fúria animalesca dos bandoleiros. Os últimos vitimados foram Zé
Bonitinho, um doidinho que morava na região, e João de Clemente, trazido à
força enquanto seu pai e seu irmão jaziam mortos logo atrás.
Zé
Bonitinho, encontrado nos beirais da estrada e forçado a seguir a fúria, teve a
cabeça decepada num batente, enquanto João foi morto a tiros e já quando os
animalescos cangaceiros haviam se dado “por satisfeitos”. Os dois foram
enterrados próximo ao local da tragédia, pois seus corpos sepultados debaixo de
um pé de pau defronte à capelinha.
Ainda hoje
o visitante encontra o exato local dos sepultamentos, vez que há cumes de terra
e pedras espalhadas acima e ao redor. E também ex-votos, figuras antigas de
santos, restos de molduras e outras demonstrações de devoção e de promessas
feitas perante os inocentes sertanejos ali sepultados. O mês era junho, o ano
era 1932.
Oitenta e
nove anos depois, nas sepulturas e nos ex-votos as marcas da tragédia e também
da devoção aos vitimados pelo impiedoso cangaço. Ao largo dos anos, contudo, a
dor familiar foi sendo alentada pelo conterrâneo sertanejo e os mistérios de
sua fé. Aqueles mortos, por terem sido vitimados em inocência, foram como que
santificados pela crença sertaneja.
Uma fé nascida da dor, transformada em devoção e cativada na certeza da intercessão daqueles que ali repousam para a eternidade. Daí que vela são acesas, promessas são feitas, ex-votos são colocados ao lado das cruzes. E se assim acontece, no sertanejo a certeza de um poder maior além dos túmulos.
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