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quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A DEVOÇÃO NASCIDA DO SANGUE DERRAMADO PELO CANGAÇO: AS SEPULTURAS DE JOÃO DE CLEMENTE E ZÉ BONITINHO


*Rangel Alves da Costa



Perante a fé e os mistérios das crenças e devoções sertanejas, locais onde foram mortos ou sepultados inocentes, principalmente se vitimados por descomunal violência, vão, ao passar dos anos, sendo vistos como verdadeiros altares para milagres.

Tais locais se tornam centros de preces, de promessas e de busca de contato com as forças sagradas. E também locais de recebimento de ex-votos (objetos pessoais depositados como prova e agradecimento pelas graças alcançadas).

Por isso mesmo que não raro, pelas vastidões sertanejas, debaixo de baraúnas, umbuzeiros e ou mesmo num pé de pau já carcomido de tempo, o encontro com cruzes ladeadas por miniaturas talhadas de mãos, de cabeças, de pernas ou outros membros. São as provas da fé, da promessa e da crença na cura.

Em tais locais, também o sinal de que ali, no passado, ou ocorreu uma tragédia ou sua vítima jaz entre as areias de seu chão. Assim ocorreu, por exemplo, nas Cruzes dos Soldados, na Estrada Histórica Antônio Conselheiro (Estrada de Curralinho), em Poço Redondo, sertão sergipano.

No local onde os inocentes soldados Zé Vicente e Sisi foram tocaiados e mortos pelos subgrupos de Corisco e Mané Moreno, como cega vingança pela morte do cangaceiro Pau Ferro, a qualquer momento podem ser avistadas as cruzes como marcos da tragédia, mas também os ex-votos ao lado deixados. São muitos os locais dessa instigante fé sertões adentro.

Outro exemplo, também em Poço Redondo, pode ser avistado em frente à igrejinha de São Clemente, na localidade quilombola de São Clemente, cuja antiga sede da propriedade (ao lado da capela) foi palco de uma tragédia de terríveis e indescritíveis dimensões.

Neste local foram mortos, pelas sangrentas mãos de bandoleiros liderados pelo impiedoso e perverso cangaceiro Gato, dois sertanejos: João (o pai Clemente e o irmão Doroteu já haviam sido mortos há instantes atrás na Fazenda Pelada) e Zé Bonitinho.

Saliente-se que estas foram as duas últimas vítimas de uma chacina, num só percurso de ódio e maldade levado a efeito pelo citado Gato, bem como seus acompanhantes, os cangaceiros Azulão, Medalha, Cajueiro e Suspeita.

A cangaceirama, após o sumiço de umas selas e uns arreios enterrados nas proximidades da Fazenda Couro (no lado baiano, logo após um riacho que faz divisa com Sergipe), recebeu ordens de Lampião para seguir no encalço dos responsáveis (Temístocles e um amigo) pela entrega dos couros à polícia baiana.

Mas toda perseguição ocorreu no lado sergipano, nas terras de Poço Redondo. Ordens recebidas, Gato e seus sequazes partiram com odiosa cegueira e sangrenta voracidade. O problema foi que a vingança passou a ser perpetrada contra qualquer sertanejo que fosse encontrado sozinho ou em suas casinholas de meio de mato.

Sete sertanejos foram mortos, sendo que dois destes na Fazenda São Clemente, último ponto de sangria da fúria animalesca dos bandoleiros. Os últimos vitimados foram Zé Bonitinho, um doidinho que morava na região, e João de Clemente, trazido à força enquanto seu pai e seu irmão jaziam mortos logo atrás.

Zé Bonitinho, encontrado nos beirais da estrada e forçado a seguir a fúria, teve a cabeça decepada num batente, enquanto João foi morto a tiros e já quando os animalescos cangaceiros haviam se dado “por satisfeitos”. Os dois foram enterrados próximo ao local da tragédia, pois seus corpos sepultados debaixo de um pé de pau defronte à capelinha.

Ainda hoje o visitante encontra o exato local dos sepultamentos, vez que há cumes de terra e pedras espalhadas acima e ao redor. E também ex-votos, figuras antigas de santos, restos de molduras e outras demonstrações de devoção e de promessas feitas perante os inocentes sertanejos ali sepultados. O mês era junho, o ano era 1932.

Oitenta e nove anos depois, nas sepulturas e nos ex-votos as marcas da tragédia e também da devoção aos vitimados pelo impiedoso cangaço. Ao largo dos anos, contudo, a dor familiar foi sendo alentada pelo conterrâneo sertanejo e os mistérios de sua fé. Aqueles mortos, por terem sido vitimados em inocência, foram como que santificados pela crença sertaneja.

Uma fé nascida da dor, transformada em devoção e cativada na certeza da intercessão daqueles que ali repousam para a eternidade. Daí que vela são acesas, promessas são feitas, ex-votos são colocados ao lado das cruzes. E se assim acontece, no sertanejo a certeza de um poder maior além dos túmulos.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


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