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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 6 de fevereiro de 2022

Palavra Solta – “e no coração a curva de um rio, rio, rio...”


*Rangel Alves da Costa

 

Nos versos de Flávio Venturini, eis que meu olhar se lança nas curvas aguadas do Velho Chico para, na visão do seu leito, dizer de quanto pulsa o coração pelas memórias e saudades tantas. Saindo das margens escondidas na região de Cajueiro, então o coiteiro Messias Caduda vai conduzindo Maria Bonita do Capitão até as ribeiras de Propriá. A cangaceira precisa cuidar da saúde. Acaso olhasse pra trás, nas curvas do tempo, iria ouvir o apito do Vapor Moxotó, ainda em 1917, cortando as águas para depois naufragar ao largo de Belomonte, defronte a Bonsucesso, nos sertões sergipanos de Poço Redondo. No murmurejar das águas, as velhas moradias dos grandes peixes que não passam mais. Surubim, tubarana, peixe grande, fartura. Os canoeiros acordam suas canoas e barcos do repouso noturno. Redes, anzóis, varas, tarrafas, cuias com piabas para servir como iscas. Era uma fartura de peixes derramados nos cestos grandes. Das calçadas altas de Curralinho (assim tão altas para proteger a povoação das enchentes grandes do rio), as mulheres debruçadas em suas janelas ou assentadas em velhas cadeiras. Avistam seus pescadores, mas enxergam também o passado. As grandes canoas de tolda chegando e partindo, os vapores apitando e carregando e descarregando gente, levando e trazendo sacos, toda uma vida através das águas. As vendas de Chico Bilato, Seu Neguinho e Wilson, e outras mais por detrás das portas largas, são de pouco sortimento, mas suficientes para servir aos ribeirinhos e visitantes. Cajuína, tubaína, bolacha Maria, vinho de jurubeba, mariola, bolachão doce, goiabada. Mais adiante, nas beiradas do rio, os panos e as roupas lavadas sendo estendidos. As lavadeiras cantavam felizes, prazerosas daquele viver singelo. De vez em quando se ouvia o som rasgado de uma sanfona. Ninguém sabe ao certo se de Valter ou de Ciano. Pelos beirais do rio, do alto das pedras grandes, o nego d’água dava batim estrondosos. E de repente já aparecia dentro de uma canoa, para assustar o pescador, e depois sumir em gargalhadas. Os mistérios e as lendas do rio. E era para afastar o desconhecido que as embarcações despontavam trazendo na proa a carranca de dentes grandes, feição tenebrosa, sempre assustadora. Um símbolo do rio que o tempo levou. E tudo passou, tudo o vento levou. Mas meu olhar ainda se lança nas suas águas e o meu coração se faz saudoso pelas curvas de um rio, rio, rio...

 

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


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