SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 3 de outubro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 49 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 49

                                          Rangel Alves da Costa*


Depois de uns dez minutos se despediram forçadamente de Paulo. Este queria de todo jeito que a irmã ficasse ali ao seu lado para que todas as noites adormecesse no seu colo. Alegou que precisava sonhar um sonho bom e no chão onde dormia só apareciam pesadelos sempre acompanhados de ratos, baratas e outros bichos.
Se a irmã ficasse ali e estirasse as pernas pra ele deitar a cabeça, como sua mãe fazia quando ele era menorzinho, talvez sonhasse com uma porta se abrindo e um sol entrando pelo buraco da telha. Também queria sonhar sendo um cavalo alazão e correndo sem destino pelos descampados, sendo uma pedra bem grande que chora de alegria em cima de uma montanha porque a idade vai lhe transformar em pó e depois o vento vai chegar e levar por aí.
Tudo sonho de liberdade. Não dizia, não sabia explicar, mas não meros devaneios e muito mais a ânsia de libertação lhe aguçando mentalmente, naquela fresta onde o pensamento ainda assegurava ao menos sonhar com a liberdade. Assim, com tais coisas era o que mais queria sonhar na vida, disse enquanto era abraçado e beijado. Carmen se continha à força para também não se desmanchar em lágrimas.
Acenou enquanto saía acompanhando pelo agente prisional, não olhou mais pra trás e nem falou mais nada. Pela porta aberta, sendo levado pelo corredor sem ter as mãos algemadas, a irmã continuava olhando e chorando, avistando naquele irmão outro familiar que certamente perderia, avistando ali um resto de gente que plenamente caracterizava o que pode fazer um ato de injustiça, protagonizado pela própria justiça e por pessoas que deveriam ser responsáveis por fazer justiça.
Seguindo pelo corredor até ser jogado novamente no lixão, no monturo, na putrefata masmorra, ouviu o acompanhante lhe falar mas não respondeu. Ouviu-o perguntar se gostava da irmã e não disse nada. Quando quis disse apenas que o palácio real tinha sido invadido e para se salvar o rei se transformou na rainha e casou com o invasor para se manter no poder. E sorriu depois, até gargalhou. E foi a última vez que sorriu, foi a última gargalhada que deu. Nunca mais viram ou o avistaram sorrindo. Nem maluquices ou coisas desconexas falou mais. Aliás, depois dessa visita ficou ainda mais quieto, calado, mais distante de tudo.
Descobririam mais tarde que ele ficava em silêncio absoluto na presença de outros presidiários, agentes penitenciários e pessoas da direção. Por mais que puxassem assuntos, por mais que o ameaçassem e até praticassem violência física, continuava indiferente, impassível, emudecido, como se estivesse em outro mundo completamente diferente. Mas se olhavam pelos buracos ou de local onde ele não percebesse, então o encontrariam num incessante diálogo com o desconhecido, falando sozinho, ora indagando, ora refutando o que dizia.
Do mesmo modo, depois do encontro com a irmã e Carmen decidiu diminuir muito a alimentação já escassa que recebia. Praticamente rejeitava tudo que lhe era oferecido, não queria mais comer quase nada. Rejeitava o café, o feijão e o arroz estragados e toda iguaria nojenta que chegava ali. No café ficava apenas com o pão mofado e durante o dia inteiro continuava com ele sendo lambido. O pedaço de mortadela não, pois parecia que gostava e jogava tudo na boca de uma vez, engolindo talvez sem mastigar.
Mas passou a ter outros hábitos alimentares repugnantes, tristes só de se imaginar. Eis que passou a experimentar e até comer os restos de comida que encontrava pelo chão, cascas de banana e todo amolecido que fosse catando pelos muitos lixões que se espalhavam por todos os lugares. Ele mesmo era um lixo ali, como todos os demais. Restos jogados e espalhados no lixo e restos de pessoas vivendo dentro do lixo e sendo o próprio excremento, o próprio dejeto.
Muitas vezes, se avistados na proporção do tamanho, não haveria como se distinguir homens de ratos, homens de baratas, homens de restos de homens. Ali, os bichos que rastejavam pelos corredores e arredores fétidos cumprindo seus destinos de animais agiam com muito mais razão do que os próprios humanos, vez que uns se alimentando daquela vida de imundícies, enquanto outros se tornando bichos imprestáveis pelas circunstâncias e pelo desejo de outros homens. Será que também humanos?
É de Manoel Bandeira um poema, intitulado “O Bicho”, que serve para exemplificar, ainda que diferentemente dessa realidade bem mais dolorosa, essa abominável condição humana. Diz o poeta:

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Muitas vezes não havia como delimitar onde estava o bicho e onde estava o homem, o inseto e o indivíduo, a praga e o ser, o rastejante e o andante. Todos nas mesmas masmorras medievais, em ambientes doentios, frios ou quentes demais, sem iluminação ou ventilação, sem qualquer estrutura higiênica e tendo espalhadas por todos os cantos os focos de todos os tipos de doenças, principalmente de pele e das vias respiratórias.
Ora, os insetos ruins, os fungos apavorantes, as pragas infectantes, os bichos contaminados, os animais doentios se reproduzem em ambientes fechados, nojentos, insalubres, molhados, mofados, sujos, asquerosos. E eram exatamente nesses ambientes onde estavam os presidiários, os apenados, reclusos, misturados nesses focos e expostos ao surgimento de todas as mazelas físicas e mentais possíveis. E ainda não era uma penitenciária para acolher os definitivamente sentenciados, mas apenas um presídio de passagem.
Tinha que ser amigo do rato, pois ali também era o seu habitat; tinha de suportar as pulgas pelo corpo e cabelos, pois local propício para estarem ali; tinha de ver surgir pelo corpo os manchões, as feridas, as coceiras, as sarnas, as infecções, pois tudo ocasionados pelos bichos que se infestavam por todo lugar. Talvez não pudessem nem reclamar, pois claramente ali era domínio dos bichos e não dos homens. Quando foram jogados naqueles ambientes os seus moradores já habitavam há muito tempo.
E talvez por isso mesmo que agindo sobre o homem, infectando-o, fazendo surgir mazelas até incuráveis, os bichos tentavam expulsar os homens do seu mundo. Como não conseguiam, pois a cada dia surgiam mais e mais indivíduos, então socializaram os ambientes, compartilharam as doenças e as imundícies, passaram a conviver pacificamente com os detentos, ora dentro, ora por cima do corpo ou nos arredores. E era por isso que se misturavam, num convívio só, tanto bicho e quase bicho.
Assim estava Paulo, meio homem, quase bicho. E bicho doentio, homem enlouquecido talvez pela vida de bicho.

                                                    continua...




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domingo, 2 de outubro de 2011

RESPOSTA AO QUE VOCÊ NÃO ME DISSE (Crônica)

RESPOSTA AO QUE VOCÊ NÃO ME DISSE

                                    Rangel Alves da Costa*


Quem dera ter a força do silêncio. E do silêncio a sua palavra, o seu murmúrio, o seu grito. E não sei nem tenho nada do silêncio porque a luz entristecida do entardecer não deixa, a saudade e as tantas recordações não permitem, essa expressão que assoma nos olhos e no lábio trêmulo não consente.
Quem dera ter a força do teu silêncio e me fazer ouvir sem ter de falar. Ora, a palavra que possa expressar, tudo que tenha a dizer, nada disso precisa sair da boca senão do entendimento do outro que já sabe o que você acaso queira falar. Mas fala sempre, ainda que no silêncio ouve-se o seu falar.
Sua voz no silêncio ou o silêncio falando em seu nome e chegando a mim feito sermão na montanha, não há como deixar de entender cada palavra e por isso mesmo querer responder no mesmo instante. Vem-me, me chega tudo, como se o vento que sopra usasse o seu batom.
Contudo, ainda que o seu silêncio tenha o poder de ressoar um grito, continuo esperando aqui, sentado na frente da vida e olhando a feição da ventania, o que você tem a me dizer e ainda não disse. E talvez não queira dizer por que sabe que já sei. E sei mesmo...
Pela força do seu silêncio é que me chega cada palavra. E veja que não me refiro a entendê-la pelo gesto, pelo aceno, pela ação, pelo olhar pela feição, pelo estado de alegria ou de aflição. Não, o que sei faz parte de um todo dividido em pedaços, e tudo juntado agora para dizer o que teria de ser dito sempre.
Não nos conhecemos de agora, de ontem, de qualquer acaso. Sei que o seu olhar me olhava do mesmo jeito que o meu olhar lhe admirava; sei que um dia quis me revelar um segredo que há muito eu já queria lhe revelar; sei que o outro lado da rua era distante demais quando um ou outro virava a esquina. A presença era tudo e o querer também.
A vida passou, porém nada mudou. E a prova maior de que nada mudou está no presente que ontem lhe enviei. Não sei se a minha escolha agradou seu coração, mas não haveria um presente melhor e mais verdadeiro, com cada objeto nele contido correspondendo às palavras de outros tempos que não foram ditas.
Uma cesta de vime ou de cipó do mato, nem sei. Flores do campo, bem sei, pois eu mesmo as colhi. Uma concha do mar com um segredo sussurrando dentro; um colar de pequeninas conchas com uma estrela do mar prateada; uma pulseira de pedaços de onda, uma garrafa lacrada com um bilhete dentro que achei na beira da praia da minha boca; uma cestinha menor com frutas da estação. Inclui também um verso de Florbela Espanca que o vento me trouxe e ainda uma janela aberta desenhada num papel cheirando a perfume. Se você olhar bem vai me enxergar adiante. Sou aquele que sopra um beijo.
Com esse presente talvez eu esteja respondendo ao que você nunca me disse, mas imagino teria muita vontade de dizer. Se o que envie representa um reconhecimento de quem lhe conhece e admira há tanto tempo, então digo que sou grato pela amizade; se o que recebeu lhe causou espanto porque achava que eu nunca lembraria você desse jeito, então digo que jamais esqueci um segundo desde aquele primeiro olhar.
Mas também se apenas recebeu e em seguida não quis nem saber quem enviou, deixou esquecido pelos cantos ou simplesmente jogou tudo pela porta dos fundos ou no lixo, ainda assim direi que não importa que não tenha gostado ou que não tenha dado nenhum valor, bastando em mim o sentimento de ter tentado me aproximar de você.
Contudo, se gostou do presente e sorriu ao ler a mensagem e o nome de quem enviou, e depois passou a olhar carinhosamente tudo ali contido e usufruir com graça e prazer cada coisinha como se fosse uma lembrança imensa, então não direi mais nada. Já sei o que você queria me dizer sempre e não o fez porque não sabia que eu estaria do outro lado daquela janela.
E nesse momento do seu silêncio lembro-me da voz do coração. Fala pelo amor e pela saudade que sente.




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Às vezes o vento... (Poesia)

Às vezes o vento...




Que me venha a tarde
que me venha a janela aberta
que me chegue a saudade
que me aflija essa descoberta
mas me chega esse vento
trazendo folhagem e tormento
e às vezes esse vento
querendo aumentar meu sofrer
traz no ar seu perfume
a sombra que tenho ciúme
às vezes o vento
por não seguir adiante
me traz sua boca e semblante
roça teu cabelo no meu
sopra um segredo só teu
e outras vezes o vento
despindo sua roupa inteira
esconde o corpo de brincadeira
fazendo a boca vermelha sorrir
me tira o sabor que quero sentir
e quando o vento voltar
pedirei para distante me levar
ligeiro a qualquer lugar
feito folha seca sem destino
em busca de tuas asas
nesse mundo pequenino.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 48 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 48

                                          Rangel Alves da Costa*


Carminha não sabia nada sobre aquele passarinho que Paulo falava nem da sua cor, mas sentia realmente algo estranho no seu comportamento. Não era uma conduta normal que de repente alegasse uma coisa que sua irmã desconhecia totalmente. Do mesmo modo, demonstrava um aspecto físico e mental que também não havia como ser visto como habitual.
Estava nervoso demais, porém um nervosismo que não causava agitação, mas um olhar sensivelmente brilhoso que se agitava nas pálpebras, procurando rapidamente alguma coisa de cima abaixo, passando depois a um jeito sombrio de enxergar as coisas, com visão opaca, entristecida demais. Não era médica, psicóloga ou psiquiatra, mas à evidência tinha-se um desvio comportamental, alguma afetação mental ou coisa parecida.
E a irmã, tentando acalmá-lo, perguntou: “Eu vim aqui juntamente com minha amiga lhe visitar, a doutora Carmen, e você vem logo falando sobre passarinho. De onde foi que você tirou essa história de passarinho, desse tal azulão, rapaz, diga? Melhor não. Então fale de você, diga a gente como você está que depois conversaremos sobre outras coisas...”.
Nem deixou a irmã terminar e se pôs a falar, olhando pra cima e andando de um canto a outro, agitado, mexendo incessantemente as mãos:
“Diga a mãe que não venda a casa não. Aquela casa é minha e vou fazer nela um laboratório muito grande e muito importante. Você sabia, Aninha, que num laboratório a gente pode fazer o que quiser? Pois é, saiba disso que se você quiser pode também me ajudar. Você cuida de umas coisas e eu cuido de outras. Já estou aprendendo como fazer viver novamente quem já morreu e então vou trazer de volta um monte de gente que não podia ter morrido de jeito nenhum. Na sua parte do laboratório você vai fazer um jeito de dar sumiço sem ter que matar quem não presta. Acho que você vai ter mais trabalho do que eu Aninha, pois a maioria do povo que vive nesse mundo não presta e nem merecia ser chamado de humano. Todo esse povo que não presta, que não vale nada vai caber a você dar sumiço, dar fim, mas sem ter de matar de morte matada. Da minha parte só vou trazer pessoas boas e importantes. Já tô fazendo uma lista e já tenho os nomes de São Francisco de Assis, do Negrinho do Pastoreio, João Paulo II, Antonio Conselheiro, São Jorge do Dragão, Anjo Gabriel e muitos outros. Estava também pensando em trazer de volta Elvis Presley, mas todo mundo diz que ele não morreu, então deixe ele quieto. Pensei também em trazer Pedro Álvares Cabral pra ele contar direitinho essa história do descobrimento. Tô pensando ainda...”.
Jogada ao peito de Carmen, a irmã de Paulo chorava sem parar, num pranto doloroso, cheio de soluço e aflição. “O que fizeram com meu irmão Dona Carmen, o que esse lugar está fazendo com meu irmão, o que essa justiça conseguiu fazer com meu irmão. Enlouqueceu, está completamente louco, Dona Carmen”, conseguiu esboçar. “Calma minha filha, calma”, ouviu como conforto, enquanto era fortemente abraçada.
Mas sem se importar com o que conversavam, Paulo continuou com seus devaneios e agora numa embaralhamento de ideias maior ainda:
“Todo preto é branco e esbranquiçado, eu já disse, mas nem todo vermelho é lilás. Até podia ser porque é tudo cor, mas tem vez que o preto fica vermelho também. Mas não quero meu arco-íris com nenhuma dessa cor. É tudo feio demais. Quem já viu dizer que preto é cor, que branco é cor, que cinza é cor? Pra mim só é cor o marrom, porque é a cor do meu arco-íris, todo marrom outono. Outono marrom escuro, marrom, claro, marrom esverdeado, amarelado, acinzentado e marrom mesmo. E marrom também é a minha cor, meio marrom e meio violeta, e é por isso que sou bonito. E ainda dizem que hoje ele não veio aqui. Veio sim porque eu vi, e tava até mais novo do que vi outro dia. Uns dez ou mais anos mais novo. Acho até que ele não fica velho não, pois vi ele aqui do mesmo jeito que avistava quando eu era mais velho. Talvez ele seja meu parente, meu pai quem sabe, já que dizem que também sou filho de Deus...”.
“Para, para com isso agora mesmo Paulo! Para com isso pelo amor de Deus!”. Era a irmã completamente atormentada, correndo pra cima e tentando segurar-lhe as mãos. “Pare com isso Paulo, você não está doente meu irmão, eu sei que está só brincando com a gente. Diga Paulo, diga pelo amor de Deus, pela alma de nossa mãe que...”.
Assim que ouviu falar na mãe se acalmou, fixou calmamente a irmã, olhou-a bem dentro dos olhos e disse baixinho:
“Você falou em alma de nossa mãe Aninha, onde tá a alma dela Aninha, você trouxe a alma dela Aninha? Mas não precisava trazer não porque sei onde ela está. Ela tá dormindo agora escondida, bem escondida debaixo do chão onde durmo. Se você quiser eu levo você até o chão onde durmo pra você olhar a alma de nossa mãe, viu Aninha? Ela chegou aqui ontem de noite. Eu já tava dormindo quando ela chegou e bateu no ombro e disse que queria ficar comigo, não sair mais nunca do meu lado. Achei tão bonita a alma de nossa mãe que deixei ela ficar. Agora ela tá dormindo. Quer ver ela Aninha?...”.
Sem suporta mais, quase enlouquecendo também diante da situação, a mocinha deu uma tapa na cara do irmão com toda força que podia. Desesperada, achava que com essa atitude impensada iria despertá-lo para a realidade. Foi preciso Carmen se jogar entre os dois, fazer um carinho no rosto de um Paulo assustado e dizer à mocinha:
“Você não está vendo que ele está doente, muito doente e precisa de nossa ajuda, não dessa violência?”. E ela se jogou pelos cantos num pranto ainda maior. Conseguiu com que o rapaz sentasse, mas em seguida este se dirigiu até o local onde estava a irmã, pediu a ela que estirasse as pernas, deitou no chão e colocou ali a cabeça, ficando silencioso e pensativo. Carmen gesticulava para ela ficar quieta e não dizer absolutamente nada.
Em seguida chamou o agente prisional dentro da sala e perguntou baixinho se eles já haviam percebido que Paulo estava doente, talvez com algum problema mental. E este respondeu que não, pois o rapaz ficava em silêncio o tempo todo, não falava com ninguém e nem gostava de companhia perto dele. Então Carmen pediu que falasse com o diretor sobre isso, pois talvez ele já soubesse de alguma coisa, mas que no dia seguinte voltaria ali para cuidar melhor desse grave problema.
O agente avisou que a visita já estava encerrada, mas ela pediu só mais cinco minutos, vez que Paulo agora dormia sossegadamente no colo da irmã.

                                                     continua...







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sábado, 1 de outubro de 2011

CONHECIDOS (Crônica)

CONHECIDOS

                                 Rangel Alves da Costa*


Não conheço, não gosto e nem quero pensar que existem, pessoas falsas, mentirosas, que possuem o triste dom de ser de um jeito agora e no momento seguinte já se transformar totalmente.
Conheço muitas pessoas assim. E elas estão dentro da própria família, nas supostas relações de amizade, naqueles que chegam oferecendo uma flor e apertam o meu dedo bem no local do espinho.
Por isso gosto de Schumann, de Lampião, de Carlos Drummond, de Greta Garbo, de Mahatma Gandhi, de Villa Lobos, de Tonico e Tinoco, de Chico Xavier, de Agatha Christie, de São Francisco de Assis, de Evita Perón. Ora, nunca me fizeram mal algum.
Mas não gosto do irmão que só finge gostar quando precisa. Depois não presto, não valho nada, sou isso ou aquilo; fere só por ferir e mais tarde se faz de esquecido. Nem do irmão nem da irmã, primo, sobrinho, afilhado, seja lá o que for. Ora, o que não presta é preciso ser reconhecido como tal, seja na família ou no quintal.
Por isso gosto de Madre Teresa, de Carlos Lacerda, de Churchill, de Antoine de Saint Exupéry, de Clemilda, de Gérson Filho, de Corisco e Dadá, do Conde D’Eu, de Epitácio Pessoa, de Assis Chateaubriand, de Emilinha Borba, de Evaldo Braga. Ora, nunca foram falsos comigo e nem se mostraram ter duas caras. Ao menos comigo.
Mas não gosto do vizinho, nem de frente, do lado ou dos fundos, nem da palavra vizinho gosto. Todo aquele que esquece a sua vida para viver olhando a vida do outro, inventando, mentindo e fofocando não merece nem um bom dia nem uma boa tarde. Quanto mais se aproxima com sorrisinho e doce palavra mais falso é, e por isso mesmo que fique na sua janela ou por trás do seu muro que passo calado.
Por isso gosto de Luiz Carlos Prestes, de Jorge Amado, de Zélia Gattai, do Padre Arnóbio, de Dom Paulo Evaristo, de Dina Sfat, de Alceu Valença, de Sandra Brea, de Chacrinha, de Dolores Duran, da rainha Elizabeth, de Che Guevara, de Procópio Ferreira, de Ascenso Ferreira, de Ariano Suassuna, de José Mauro Vasconcelos. Estes nunca me deram um bom dia, nem sabem ou sabiam que existo, mas também nunca me fizeram mal algum.
Mas decididamente não gosto daquele que só finge gostar quando está precisando de alguma coisa. Não visita para não trazer à frente a lista de precisão, não telefona a não ser para perguntar se tenho isso ou aquilo. Muitas vezes passa por mim e não fala, vai por outra rua para não me encontrar, assim que ouve falar no meu nome logo arruma um jeito de ajudar na crítica desfavorável.
E isso me ajuda a dizer que gosto de T. S. Elliot, de Florbela Espanca, de Cecília Meireles, de Garrincha, de Graciliano Ramos, de Fernando Pessoa, de Olívia de Havilland, de Carlitos, de João Ubaldo Ribeiro, de Odylo Costa Filho, de Dercy Gonçalves, do Mestre Pastinha, de Cid Moreira, de Agepê, de Sivuca. E por que não haveria de gostar de quem é tão diferente daqueles que conheço e que infelizmente ainda estão por aqui?
Mas não posso negar que não gosto daquele que, gostando de mim, não consegue ser verdadeiro só pra me agradar; daquele que deixa lhe faltar para me servir; daquele que baixa a cabeça quando tem que me olhar no olho e dizer a verdade, falar o que pensa, expressar o que deseja; daquele que prefere dizer aos outros o que somente a mim caberia saber. Até perdoo pela nossa imperfeição, mas não gosto não.
E tudo isso me faz concluir que gosto de todas aquelas pessoas, de ontem ou de hoje, que passaram com suas armas, artes e travessuras sem que tenham ou tivessem que me derrubar para passar, para seguir adiante. Por isso mesmo gosto de todos aqueles que são desconhecidos, até que eu os conheça e possa julgar como penso.
Pensaram que eu não falar nem de Deus nem de mim? Só não gosto mais de mim porque não consigo fazer tudo aquilo que a pessoa que mais me ama gostaria: meu Deus!




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Amor sem roupa (Poesia)

Amor sem roupa



Seda brilhosa encantada
leve voando ao vento
tanta luz e tanta cor
mas sem agasalhar o amor
e da lua veio a estampa
tricô e rendado dos astros
linha dourada multicor
e nada que vista o amor
mas talvez tecido de ouro
motivos de brilhantes azuis
vivazes parecendo ter sabor
mas sem servir para o amor
se ainda nada disso servir
talvez o amor queira escolher
qualquer roupa para usar
assim quase nada num corpo
do outro corpo se vestir
com o suor e a nudez se enfeitar
para tirar a roupa quando for usar.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 47 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 47

                                          Rangel Alves da Costa*


Carmen recolheu o papel, leu novamente e achou até criativa a ameaça: “Cuidado mocinha. Mexer em casa de maribondo faz mal à saúde. Quem é amigo adverte”. Resolveu guardá-lo como recordação e lembrança. Porém lembrança que estava sendo vigiada, acompanhada, que estavam seguindo os seus passos, que sabiam onde estava indo. Ao menos eles tiveram o cuidado de mandar um alerta, pensava ela, quase sorrindo, enquanto manobrava o veículo.
Tinha vontade de sorrir, mas sabendo que era uma situação gravíssima, dramática até. O bilhete havia sido o início de ameaças mais duras, talvez; aquele recado simplesmente queria dizer que ou fecha a boca, para de investigar e faz de conta que não viu nada nem sabe de nada ou poderá acontecer o pior. Se era assim então estava correndo perigo, principalmente porque não tencionava esquecer nada daqueles absurdos que estavam ocorrendo.
Enquanto pessoa restava tomar mais cuidado consigo mesma, evitar ambientes como aqueles, uma praça sem grande movimentação e propícia a esconderijo de pessoas com más intenções. Ainda que no veículo seria muito perigoso se dirigir a determinados lugares. Mas haveria de dar um jeito nisso tudo, e uma das principais atitudes a tomar seria brevemente visitar a família e relatar ao pai tudo o que estava acontecendo, desde os fatos em si até as ameaças surgidas.
Contudo, outro problema indubitavelmente havia surgido e dizia respeito ao seu endereço. Havia saído do apartamento e procurado abrigo temporário junto a uma amiga para evitar exatamente que soubessem onde morava, mas agora tinha certeza que já haviam descoberto. Haveria também de dar um jeito nessa situação e o mais rapidamente possível, mas fato é que não poderia ficar se mudando de um lado a outro só porque os inimigos estavam à espreita. Se tinha de enfrentá-los de qualquer modo, então não adiantava muito estar mudando de endereço.
Já tendo escurecido, parou o carro diante o endereço da amiga e desceu cuidadosamente, olhando de um lado a outro para ver se ali se encontrava algum suspeito, ou algum movimento estranho ou qualquer coisa que pudesse afligir seus temores. Ainda espalhando olhares por todos os lados, subiu rapidamente a calçada quando um veículo se aproximou lentamente e quase parou onde ela estava.
Agora parada, olhando assustada pra trás avistou somente alguém baixando o vidro e lhe acenando. Então imediatamente avistou um canalha, talvez o cabeça daquilo tudo, pois quem avistou não era outro senão o Deputado Serapião Procópio com um sorriso safado no rosto enrugado e gesticulando rapidamente. Depois levantou novamente o vidro e seguiu adiante. E nesse momento teve a certeza que ali estava mais um aviso.
Estava cansada demais para perder sua noite repensando nos acontecimentos recentes. Depois do banho nem quis jantar, comeu apenas uma fruta, saiu para guardar o carro e depois se trancou para organizar uns papeis e fazer algumas anotações. Nem música clássica, como gostava de ouvir sempre, principalmente Tchaikovsky, Offenbach e Bach, se dispôs a escutar, a não ser uma, pois não deitava antes de ouvir Jesus, Alegria dos Homens, de Bach.
Assim, deitou entre a melodia clássica, voando por catedrais, e o pensamento de que no dia seguinte havia marcado com a mocinha, a filha da finada Glorita, uma visita a Paulo no presídio de passagem. Como havia acontecido com Jozué, outros momentos de angústia, dor e sofrimento. Que sina, meu Deus, ter de avisar a esses pobres coitados, que já estão vivendo em situação tão difícil, sobre a morte de suas mães. Talvez Jozué tenha aceitado a morte súbita de sua mãe, o ataque cardíaco sofrido por ela, contudo com relação a Paulo seria mais complicado, vez que vitimada de forma tão trágica. Como ele reagiria só ficaria sabendo no dia seguinte.
Acordou disposta e depois de se ajoelhar perante o seu oratório ficou espiritualmente ainda mais forte. Até desconhecia esse poder de superação tão rapidamente. E depois das nove horas seguiu caminho em direção ao Quase Paraíso, local de moradia da família agora ainda mais reduzida de Dona Glorita. A mocinha, ficando alguns dias sem trabalhar, deveria estar lá esperando para visitar o irmão. Nunca havia encontrado coragem de visitá-lo na penitenciária, mas agora, diante do episódio, não havia como deixar de avistá-lo naquele mundo que não era o dele.
A mocinha ainda em lamentos parecia não ter dormido durante a noite inteira. Carmen exigiu que ela mudasse aquele semblante, que tomasse um banho reconfortante e nem pensasse em chegar à penitenciária como se ainda estivesse segurando a alça do caixão de sua mãe. Era difícil, porém tinha que mostrar forças para não complicar ainda mais a situação do seu irmão. E ao dar a notícia, fazer de tudo para não repassar a ideia de que o mundo também havia morrido. Pelo contrário, agora é que, em homenagem a ela, lutariam ainda mais pela sua libertação.
Diante daquela situação difícil, Carmen decidiu então que seria melhor que a visita fosse a mais rápida possível. E assim partiram e chegaram ao presídio de passagem já depois das onze horas. Os mesmos procedimentos burocráticos de sempre, constrangimentos em nome da segurança, mas enfim avisaram que ele não demoraria a chegar, porém pediram algo que não é praxe ser feito em situações como tais. Eis que o diretor chegou até onde as duas estavam e pediu que tentassem descobrir o que Jozué estava sentindo, pois nos últimos dias o mesmo estava se comportando muito estranhamente.
Foram encaminhadas até o local da visita e não demorou muito para ele ser anunciado. Assim que entrou e viu a irmã, foi logo correndo em sua direção e num abraço lacrimoso foi dizendo “Aninha, minha irmã, Aninha”. Esta, angustiada demais, não conseguia nem responder, apenas chorar e se envolver no apertado abraço.
Quando se apartaram e ela mirou o irmão quase grita de dor. Como ele estava esquisito, diferente, magro, com uma cor que não era a sua. Aproximou-se novamente, deu-lhe outro abraço e perguntou se ele estava bem, se estava sentindo alguma coisa, se estavam lhe judiando ali, por que estava tão magro, por que... E se afastou quando ele, ao invés de responder, disse:
“Aninha, vocês me mandaram o meu passarinho errado. Meu azulão é vermelho e vocês mandaram um azulão azul. Por que Aninha?”.
Meu Deus do céu, será que meu irmão está enlouquecendo? Foi a pergunta que a mocinha se fez antes de colocar o braço no ombro de Carmen para não desmaiar.

                                                  continua...






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