Rangel Alves da Costa*
Neste sábado, logo cedinho, um fato deveras lamentável acabou acontecendo. Dayse achou de retirar os tapetes do escritório para lavar, e na varrição empreendida acabou sobrando para a minha inocente e amiga espreguiçadeira.
Minha espreguiçadeira fica em pé e quietinha, de segunda a sexta, num canto de parede da saleta da frente do escritório. Lugar estratégico porque quando a noite cai basta puxá-la e estendê-la bem ao lado do portão. Então é uma dádiva sentar aí.
Contudo, já na sexta à noite, após recolher as plantas, deixo-a ali armada, silenciosamente me esperando, até a manhã da segunda-feira, quando retorna ao seu cantinho. Antes disso, por todo o fim de semana já testemunhou muitos instantes de reflexão, minha solidão necessária, meus momentos de conversar sozinho.
Pois bem, no passo da limpeza, eis que a espreguiçadeira foi retirada do seu cantinho e colocada à frente do portão, já na calçada. Seria coisa passageira, apenas enquanto varria e passava panos no lugar, mas foi o erro. Creio que não demorou nem cinco minutos e alguém passou pela frente e levou consigo - não sei como – minha boa amiga de descanso e meditação.
E olhe que era pesada, toda em madeira de lei, parafusada, muito maior que uma cadeira comum. Em pleno sábado, com intenso movimento na rua, e passa alguém para subtrair um objeto de grande significação em minha vida. Importante demais porque sentado nela me tornava menino, recordava a infância, percursos de vida, vivia o presente.
Já desde uns dez anos que eu com essa espreguiçadeira. Objeto de assento muito utilizado nas cidades interioranas de antigamente, hoje já não é mais colocada nas calçadas ao entardecer, debaixo dos pés de pau, nas varandas e alpendres. Dificilmente se encontra uma residência que ainda tenha essa diferenciada cadeira de descanso.
Cadeira diferenciada porque artesanalmente trabalhada para fechar e abrir, ser de fácil locomoção, permitir o tipo de inclinação que a pessoa queira ter, ainda que feita na madeira e tendo um tecido de lona como lugar de assento. Espreguiçadeira armada, dependendo da inclinação, a pessoa pode dormir sossegadamente ou apenas ficar normalmente sentado observando a vida passar.
Certa feita, morando na capital sergipana, eis que um senhor passou pela rua oferecendo espreguiçadeiras. Logo me lembrei das tardes sertanejas e suas calçadas, meus conterrâneos sentados num proseado amigueiro, velhos cochilando sentados em cadeiras assim. Nem pensei duas vezes, fui logo adquirindo uma para imitar a vida de lá, da minha terra, do meu lugar.
Durante algum tempo, abria a espreguiçadeira somente quando a noite caía. No quintal da casa, entre muros e por cima do cimento, estendia em direção ao negrume do horizonte. E logo vinha surgindo uma lua bonita, imensa, apaixonante, sempre acompanhada dos vaga-lumes das estrelas. Nem te conto nem te digo quanta coisa bonita, outras vezes pontinhas de saudades, ali vivenciada no quase silêncio noturno.
Mas depois resolvi dar outra destinação a ela. Trouxe-a de lá e a coloquei num cantinho da saleta da frente do meu escritório, que fica ao lado da mesma moradia. Fiz isto com a mesma intenção lá do fundo. Só que no novo ambiente ao invés de ter somente a lua e estrelas ao redor podia fazer muito mais, principalmente ouvir as músicas clássicas que tanto admiro após o anoitecer.
Como ficava bem ao lado do portão, tendo a rua logo adiante, sentava ali para sentir a chuva caindo, os respingos pelo meu corpo, ouvir a suave e serena melodia. Sentado, olhava o asfalto molhado, a água escorrendo, e bastava esse momento para fazer veredas no pensamento. E quanta saudade surgia, quanta lembrança renascendo, quantas feições e momentos de repente ao meu redor. Chorar também. Não nego, não posso negar, sou um chorão.
Mas alguém passou pela calçada e levou minha espreguiçadeira. Estava ali momentaneamente, apenas enquanto escritório passava por faxina, mas alguém levou minha amiguinha. Só não fiquei com mais raiva porque sou prevenido. Possuía uma cadeira igualzinha lá no fundo, no meio das tralhas, só que sem a lona.
Essa não comprei não. Estava sem uso noutro quintal e nem pedi ao dono. Disse que cuidaria melhor da bichinha e trouxe-a comigo. Bastou que a minha fosse usurpada que logo lembrei sua existência. No mesmo instante mandei fazer um reparo geral, comprar a lona do assento e providenciar o que fosse preciso.
Hoje, noite, que desça a lua, que venha a chuva. É sábado e a espreguiçadeira me espera. E é pra lá que vou meditar sobre a vida em flor. Também sobre espinhos, também sobre outonos e suas folhas ao vento.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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