Rangel Alves da Costa*
Quando o jagunço entrou na sala encontrou o coronel de costas, de mãos entrelaçadas atrás, talvez mirando as distâncias infinitas de suas terras. Continuou na mesma posição, enquanto o seu pistoleiro, nervoso, não sabia nem segurar com firmeza o chapéu que havia tirado da cabeça em reverência.
Estava nervoso sim, mas não com medo. Não era cabra pra ter medo de nada, principalmente de outro homem, ainda que coronel poderoso e afamado de todo tipo de brabeza da vida. O nervosismo era motivado pelo que tinha a dizer ao patrão, disposto que estava a dar um fim de vez na sua vida de matador de mando.
“Fez o trabalho que mandei Jesuíno?”. Disse o coronel, ainda virado para a janela, enquanto livrava as mãos para se servir de uma bebida disposta numa mesinha ao lado. Despejou o uísque, porém o copo despencou da mão assim que ouviu a resposta do jagunço.
“Num matei nem hei de matá mai ninguém. Doje diante num conte mai comigo pá dá cabo dos seus inimigo não. Só quero qui o sinhô me pague os atrasado e pode arrumá outo pá fazê suas mardade”.
Só mesmo quem estivesse do outro lado da janela para presenciar a terrível feição do coronel ao ouvir tais palavras. Homem de pele clara, rosto rechonchudo, bigode cheio queimado de fumo, de repente se transformou como numa bola de fogo derramando labareda pelas ventas. Os olhos pareciam soltar faíscas, o bigode espesso tremulava, a boca se retorceu tomada de ódio.
Contudo, o que Jesuíno ouviu nem parecia ter saído de uma pessoa em tempo de explodir, prestes a dar um bote infernal a qualquer momento. Só ouvindo a voz sem ver a feição, apenas procurou cuidadosamente escutar o que veio de lá.
“Depois de tudo se acovardou, se bandeou pro lado dos covardes, dos fracos. E olhe que você não tem escolha não, me deve obediência, tem apenas de fazer o que lhe pago pra ser feito. Um matador, um jagunço, um pistoleiro de sua laia, vai continuar sempre assim, a não ser que...”.
Nem terminou de falar e ouviu o jagunço dando passos à frente, já com voz diferenciada: “A num ser qui eu continuasse um pau mandado de vosmicê, um assassino qui mata traveiz das mão dos outo. Quem é mai bandido de nóis dois coroné? Diga. Quem é mais matadô, o qui só puxa o gatio ou quem paga pá vará as tripa? Diga coroné, diga...”.
Foi quando o coronel se virou feito fera pronta para atacar, trazendo arma na boca e chumbo no olhar tenebroso. “Mas quem é você pra tá falando assim comigo seu verme, seu matador de emboscada e tocaia. E se abrir essa boca nojenta de novo vou encher todinha de bala...”.
“Mai quem tá armado aqui é eu coroné. E sô matadô, cuma o sinhô bem sabe. E quem mata um home, faiz ele istribuchá no chão inté morrê, tomem mata um cachorro sarnento cuma o sinhô...”.
O coronel quis avançar, partir pra cima do homem, mas teve de recuar quando avistou duas armas na cintura do outro, e uma mão já na direção da cinta. Os olhos esbugalharam de vez quando viu o jagunço puxar uma arma e apontar na sua direção. Desarmado, sem poder reagir, só conseguiu atinar um jeito de sair vivo dessa. E o instinto lhe veio à voz trêmula, medrosa:
“Quanto você quer Jesuíno? Pago quanto quiser pra guardar essa arma e sair por essa porta como um homem decente e rico. Diga quanto quer Jesuíno”. Mas ouviu do jagunço: “Se assente naquela cadeira ali, é só isso qui quero agora. Se avexe...”.
O coronel sentou na cadeira de balanço já de fundilhos sujos. As mãos e as pernas tremiam como vara verde; sentia pontadas e mais pontadas na carcaça inteira; o coração queria explodir, sair pela boca. Quis colocar o chapéu encobrindo a mijada no linho branco, mas o jagunço não deixou.
Mandou que colocasse o chapéu na cabeça, acendesse um charuto e virasse uma golada de uísque. Ora, era coronel e tinha de ser tratado assim. Disse, mas falou mais:
“Quis abocanhá o mundo e abocanhô. Quis toda terra daqui e conseguiu. Quis qui todo inimigo desaparecesse de veiz e acabô mandano um a um pá debaxo da terra. Mandô matá o vigaro qui sabia demai e eu matei, mandô matá o seu porpio fio gastadô e eu matei. Todo mundo qui mandô matá eu matei, e num sei nem das conta. Se alembra do finado Mineuvino, aquele do terrenim lá de riba qui o coroné cismô de se apossar? Mineuvino era meu irmão, e o qui fiz cum ele pru causa do sinhô? Agora eu pregunto, quem farta mai morrê? Será qui num tá na hora de quem mandô matá tanta gente inocente morrê tomem não? Responda coroné!”.
“Responda coroné, responda coroné!”. Mas o coronel não respondia. Estava morto. Não suportou a verdade e morreu. Mas ao achar estranho o silêncio do patrão, o jagunço se apressou até a cadeira, balançou o homem, fez tudo para que desse sinal de vida. Mas nada. Certificou-se que estava morto.
E chorando, pedindo perdão por tudo, abraçou o patrão, parecia completamente desesperado com o acontecido. “Eu gostava tanto do sinhô, patrãozinho. O que vai sê deu agora sem as sua ordem, sem dizê quem devo matá?”. E ajoelhou-se em pranto descomunal.
Depois levantou decidido a vingar a morte do coronel, a tirar a vida do responsável por aquela tragédia. Então colocou o cano da arma no próprio ouvido e atirou. Caiu bem ao lado do patrão.
Poeta e cronista
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