SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 22 de abril de 2013

LEMBRANÇA DE DOER LÁGRIMA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Da minha infância em Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, nestas terras tão distantes e ressequidas do sertão sergipano, trago comigo o sublime e o espanto, o belo e o apavorante, a alegria e a tristeza.
Mas trago principalmente uma lembrança de dor que jamais se afasta de mim. Como diz o poema, meninos eu vi! Ainda que naqueles momentos não atinasse bem acerca de contextos e significações, hoje sei o quanto doloroso já presenciei.
Um sol. Um sol escaldante. Um céu azulado, nenhuma nuvem de chuva. E o tempo passando, a seca avançando, a planta morrendo, o bicho mugindo, berrando. A fome e a sede. O quadrante da dor. O espelho do sofrimento.
Eu era rico. Tinha prato cheio e água no copo, tinha sapato e roupa vistosa. E quem tivesse comida à mesa e o de bem vestir era rico, principalmente diante da miséria que fazia moradia ao redor, mais adiante e por todo lugar.
Meu sertão nunca abrigou pessoas de mãos estendidas pelas portas pedindo esmola. Ainda que a situação familiar estivesse insustentável, os pequeninos chorassem noite e dia de barriga vazia, jamais um pai ou mãe de família se fez de pedinte na porta do conterrâneo. Quando muito, sofrendo e remoendo por dentro, batia à porta da autoridade municipal, o prefeito.
E eu era filho de prefeito. Meninote, ainda sem entender profundamente a situação em que a maioria do povo se encontrava, apenas olhava na face de um que chegava para imaginar quanta necessidade estava passando, quanto sofrimento estava padecendo, quanto precisava de qualquer coisa para sobreviver.
Precisava de tudo. Era carente de tudo, empobrecido demais, e muito mais ainda diante da seca que se alastrava, da falta de emprego, da comida esturricada no chão, do nada vingado, da panela virada e do pote vazio. Sem caça no mato, sem sopa de osso, sem pão mofado e envelhecido, só restava a dor, o sofrimento, a miséria plena, absoluta.
Precisava realmente de tudo. A mulher precisava de remédio de dor, o filho precisava de remédio para matar as verminoses, e ele próprio sofrendo de reumatismo que não aguentava mais. E na casa faltava tudo. Na casa não tinha nada. Um telhado caindo, uma porta encostada, e lá dentro...
Precisava muito de feijão, de arroz, de jabá, de farinha de milho, de café, de açúcar, de sal, de farinha de mandioca, de uma fatia de mortadela. Mas a humildade tornava a precisão em esquecimento e jamais abria a boca para pedir além do indispensável. Dizia apenas que qualquer coisa já era de demasiada serventia. E qualquer coisa mesmo...
Qualquer coisa porque o que lhe fosse oferecido era aceito com indescritível satisfação. Os olhos tristonhos piscavam felizes, o semblante queimado de sol reluzia, a boca se abria para o sorriso sem jeito, a palavra saía silenciosa. Era comoção demais para poder falar qualquer coisa.
Apenas um quilo disso e daquilo, um pedaço disso e daquilo. Coisa que não dava para muitos dias, principalmente se a família fosse grande, como sempre acontecia naquelas taperas espalhadas rincões adentro. Daí em diante o reencontro com a barriga vazia, os sofrimento da fome e da sede, a terrível agonia. E nada de chuva...
Nada de novo debaixo do sol, como cita o Eclesiastes. Passa o dia, vem mais um dia, e o sertanejo a mirar o horizonte para ver se enxergava alguma nuvem boa se aproximando. Mas nada ainda. Tudo apenas céu, sol, calor de queimar por dentro. Sem ventania, sem passarinho fazendo ninho no chão, sem jaçanã anunciando trovoada, nada de bom a esperar. Nada de novo debaixo do sol...
Até que depois de tanto sofrimento, de morte de gente e bicho, a nuvem prenhe surgia ao longe e começava a mijar por cima de tudo. Uma festa, e que festa. A chuva chegou, a chuva chegou. E mais tarde a semente jogada, a terra gestando, o pão sertanejo. Água de beber, água de viver. E não apenas lágrimas.
E depois batiam à porta de casa com uma bacia de feijão de corda, uma mão de milho verde, uma melancia, uma penca de coisa da terra. Era o agradecimento por aquele auxílio no momento da necessidade. Até que a porta fosse novamente procurada. E inevitavelmente seria, pois sempre acontece assim.
Tudo isso já vi, já senti, já sofri diante do sofrimento do conterrâneo. Ainda que dor, ainda que tristeza, jamais quero esquecer o que presenciei. Por isso que ainda lembro o olho fundo, profundo, o corpo magro, a feição sofrida. E a alegria no momento do pão. E quanta lição!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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