SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 20 de abril de 2013

O PASSO DO RETIRANTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Depois de muito tempo de seca, quando não havia mais gado berrando no curral nem cavalo magro procurando uma inexistente sombra de arvoredo; quando não havia mais nem lama no fundo do poço nem resto de feijão com gorgulho na dispensa; quando não havia mais o que fazer, então o pai de família decidiu fechar a porteira de vez.
Todos os santos ouviram suas preces, todas as velas foram acesas, todas as esperanças acreditadas. Mas não houve mesmo jeito. Dia após dia, e logo cedinho o sol já descia incendiando tudo. O calor estarrecedor, o mormaço insuportável, a poeira quente fechando o olhar lacrimoso.
Um pai, uma mãe, um menino pequeno, e mais pequenino ainda da magrez e da desnutrição. Mas buchudinho, de um umbigo saliente, barriga forrada do barro da tapera. Cachorro não havia mais não, nem gato nem papagaio. E o desgraçado de um urubu agourento que não saía da cumeeira do casebre.
Numa manhã de mais um sol, depois de olhar a barra e só enxergar o nada ali e mais além, o homem gritou pra mulher dizendo que era hora. Já estava no tempo de arribar dali e procurar viver ou morrer noutro lugar. Tinha visto vaca deitar na malhada e não levantar mais, jegue tropeçar e ali mesmo ficar. E ninguém era bicho pra morrer por cima da terra, pra servir de comida de mosca e urubu. Aquele danado do urubu!
Um dia depois de fechar de vez a cancela, de seguir adiante no passo incerto, por ali passou um errante sertanejo, um velho repentista, já com o juízo esturricado pelo sol, com uma violinha sem cordas, e cantarolando para ninguém ouvir:

Do alto desce a fornalha
Sol em brasa e labareda
A esperança restante acabou
Do chão recolhe a mortalha
Na morte assim suceda
O mais novo que enterrou

Arruma os trapos num saco
Fecha a porta e a janela
Leva ponta de espinho no bolso
Arrebentou o lado mais fraco
Sem tempo pra rezar sentinela
Triste sina de alvoroço

Olha ao redor pra chorar
Não tem bicho a dar adeus
Mas tem a vida que fica
Um tempo de deitar e acordar
Um pão para dar aos seus
Na pobreza que era rica

Agora não tem jeito não
Só resta adiante a estrada
Com tudo seco e cinzento
Ossada espelhada no chão
A catingueira morrendo encurvada
Toda natureza em lamento

O menino reclama da fome
A mulher silencia terrível dor
Em todos o sal da sede
Um calango chega e some
Fugindo da terra em ardor
Fazendo da pedra parede

Os retirantes vão pela estrada
Família sem guarida qualquer
Sem ter fim para a jornada
O fio da cidade é espada
Não se tem uma sombra sequer
Noutra pobreza cimentada

Difícil é a vida do sertanejo
Que não pode ficar nem partir
Sofrendo em todo lugar
A única esperança em lampejo
É a chuva voltar a cair
E na terra sagrada se ajoelhar.

Certamente que o pai, a mãe e o menino nem imaginavam que aquele velho cantarolava tais palavras bem defronte sua tapera abandonada. E nem que ele, depois de olhar para os passos ainda abertos no chão, disse: Mas eles vão voltar. Vejo os sinais lá em cima. Antes de chegar e já vão voltar!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: