SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 42 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 42

                                         Rangel Alves da Costa*


Como havia acertado com Dona Glorita que ao entardecer faria uma visita para conversarem sobre a ida dela até o escritório do advogado, Carmen procurou telefonar antes para dizer que já estava de saída e que não demoraria muito para chegar.
Telefonou uma, duas, dez vezes e ninguém atendia do outro lado. Cismada com esse silêncio intrigante, vez que sabia que a mulher não deixaria de atender os seus telefonemas, resolveu ir também para saber se estava acontecendo alguma coisa inesperada, algum fato estranho. Ela mesma já nervosa, preocupada demais.
Ora, era realmente de causar preocupação quando sabia que ela já havia estado no escritório e não era impossível que pudesse ocorrer o mesmo que havia acometido a finada Leontina. Diante daquela situação, a mulher talvez tivesse se sentido mal ou acontecido algo pior. Contudo, jamais imaginaria que o desenlace daquela situação seria infinitamente pior.
Assim que enveredou pelos caminhos distantes para chegar logo à comunidade do Quase Paraíso, onde ela morava, talvez pelas preocupações que a acompanhavam chegou que nem sentiu os quilômetros rodados. Entretanto, assim que entrou na ruazinha onde ficava a casa logo sentiu que algo realmente diferente havia acontecido.
A casa estava com a porta e janelas fechadas e pessoas reunidas à frente conversando nervosamente, com ares entristecidos, gestos afobados, lágrimas escorrendo pelos rostos, numa desanimação só. Desceu correndo e foi procurar saber do que se tratava e ouviu a notícia ruim, danada demais, coisa de não querer se acreditar.
“Moça, aqui, nós que somo amigo e a vizinhança toda tá sem agüentar e nem acreditar no que ficou sabeno. A mais de pedaço chegou um carro da polícia por aqui procurano o endereço de Dona Glorita e ficamo inté com medo de que tivesse acontecido outra coisa ruim, mai foi muito pior. Os policial desceu procurano os parente dela porque havia acontecido uma tristeza, uma coisa muito ruim com a nossa amiga. Dissero que ela tava lá na cidade, bem no centro da cidade, quano foi atropelada por um carro e morreu. Num foi coisa nem de prestar socorro no hospital, num tinha mai jeito. Por isso que veio inté aqui pra ver se encrontava algum parente de maior que é pra ir lá num lugar que ele disse o nome pra fazer o reconhecimento do corpo...”.
Carmen não estava nem mais ouvindo as informações repassadas pelo velho morador. O susto foi tamanho que ficou como que paralisada por instantes, ouvindo todo o relato sem demonstração de qualquer reação, e só depois, quando voltou à realidade, que mentalmente tomou realmente ciência do que tinha ocorrido, então gritou desesperadamente por dentro. Sentiu o seu âmago se desfazer em pedaços, uma aflição se espalhar. E uma dor lhe tomou o peito que foi preciso se segurar no ombro de alguém para não desmaiar.
Foi-lhe trazido um copo de garapa, que virou de um gole só, procurou respirar bem fundo para retomar o fôlego e só depois conseguiu falar, porém com a voz entrecortada:
“Então disseram que houve um acidente, ela foi atropelada e morreu. E vieram aqui para ver se encontravam a filha para ir até o Instituto Médico Legal fazer o reconhecimento da mãe. Que notícia pra mocinha receber, mas ela deve estar trabalhando, não é mesmo? Acho que eles vieram até aqui avisar porque encontraram o endereço na bolsa. Ao menos isso restou e teve alguma serventia. Mas vocês sabem me dizer onde ela trabalha, a mocinha? Preciso saber porque talvez eles não tenham encontrado e preciso avisar a ela cuidadosamente. Seria até bom que a polícia não tenha ido até lá, pois ninguém sabe como eles podem dar essa difícil notícia aos parentes. E de repente ao invés de uma só pode até morrer mais gente. Então, se souberem me digam onde ela trabalha...”.
Mesmo sentindo-se muito mal com a confirmação da notícia, se dirigiu até o carro no intuito de ir localizar o endereço onde a mocinha trabalhava. Nas proximidades do Quase Paraíso, não foi difícil encontrar. Contudo, a polícia já havia estado ali e até se ofereceu para conduzi-la até o instituto responsável pelas necropsias e laudos cadavéricos. Então a essa altura ela já estava no IML para fazer o reconhecimento do corpo da mãe. Que tristeza, meu Deus! Era a expressão do sentimento de Carmen.
Continuando completamente atordoada, ainda assim antes de sair do local perguntou às angustiadas colegas de trabalho como ela havia recebido a notícia e como estava se comportando mental e fisicamente ao sair dali. Nenhuma das amigas conseguiu, por mais que tentasse, responder à indagação. Apenas choro, gestos angustiados e palavras inaudíveis pelas gargantas sufocadas. Não precisavam dizer mais nada.
Assim que adentrou as dependências do IML, tentando enxergar em meio a tantos rostos doloridos e tomados por lágrimas, palavras de aflição e até gritos, a mocinha filha de Dona Glorita, andou de um canto a outro e nem sinal dela. E quando já ia se dirigindo até a recepção então ouviu uma voz vindo de um cantinho de parede, lá no fundo, bem no escondido:
“Dona Carmen”. Ao ouvir o seu nome e se virar para saber de onde vinha aquela voz, avistou a própria transfiguração em pessoa, apenas parecendo um resto de gente sentada no chão e como que enrolada nas próprias pernas. No cantinho, transtornada, completamente fora de si, com as feições que nem pareciam de gente, estava a mocinha, a filha de sua amiga Glorita. A filha ali, naquele estado piedoso, e a mãe lá dentro, morta.
“Oh, minha filha!...”, e Carmen correu naquela direção e se jogou ao chão, se juntando a ela na dor. “Dona Carmen, minha mãe saiu de casa com saúde para resolver um problema e olhe aonde veio parar...”. “Se acalme minha filha, se acalme, tenha forças. Nesse momento é preciso se apegar ainda mais em Deus para ter as forças necessárias. Mas você já foi chamada para fazer o reconhecimento?...”.
“Não, e nem vou. Quero minha mãe como ela é, quero encontrar ela em casa, quero abraçar e dizer que estão brincando comigo. Diga que tudo isso é mentira, é brincadeira de mau gosto, é alguma invenção, diga Dona Carmen, diga...”.
“Não, infelizmente é tudo verdade. Mas deixe que providencio o reconhecimento. Agora venha, levante...”. E depois de confortá-la um pouco mais, deixou a mocinha sentada num banco e se dirigiu para outras dependências do instituto.

                                                    continua...






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domingo, 25 de setembro de 2011

A RAPADURA DE JUAZEIRO (Crônica)

A RAPADURA DE JUAZEIRO

                                         Rangel Alves da Costa*


Na cidade onde moravam não tinha jeito. Por mais que olhassem de cima a baixo novamente sempre se constatava que Juquinha e sua avó eram as pessoas mais pobres do lugar, moravam na casinha mais empobrecida, eram os mais precisados de tudo.
Realmente o neto havia sido criado pela avó desde pequenininho, desde que os pais arribaram dali pra nunca mais dar nem notícia do paradeiro. Agora ele já era rapaz feito, bonitão, muito simpático como pessoa, trabalhador, mas com uma característica marcante que dificulta a vida de qualquer cristão, que é a pobreza.
Considerando-se que naquele lugar, como em tantos outros mais pra baixo e mais pra riba, a pessoa só vale pelo que tem, então se pode afirmar que o rapazinho era visto como um zé-ninguém, como um zero à esquerda, como mais um pobre que não devia nem ter nascido.
Tal situação de penúria deixava a pobre da avó sem mais saber o que fazer. Trabalhar ela não podia mais naquela idade; ele não arrumava nem emprego nem bico de jeito nenhum; esmolar pelas ruas nem ela nem ele jamais pensavam em fazer, mesmo que estivessem passando fome.
O único dinheiro que entrava na casa era uma parte da aposentadoria por velhice que ela recebia; coisinha pouca mesmo, pois o gerente do banco todo mês dizia que o dinheiro estava chegando cada vez menos, pois estava sendo descontada uma parte referente a um empréstimo aditivado sob o fundo vinculado de movimentação anterior à aceitação posterior. Quer dizer, enganação pura para ficar com o dinheiro da velha, e assim fazia todo mês, na roubalheira e na cara de pau.
Verdade é que a coitada chegava em casa com dois contos de réis, depois de passar na vendinha e pagar umas comprinhas feitas. O dinheiro que sobrava dava somente pra comprar um quilo de carne com osso, um quilo de tripa, uma massa de milho e um litro de querosene pra acender o candeeiro. Às vezes não tinha dinheiro nem pra o pavio.
Nesse ruma e vai, a roupa mais nova que Juquinha tinha já tinha lá pra mais de três anos, e calça curta que mais parecia um bermudão apertado. Camisa de malha com dois furinhos escondidos e que não dava pra ninguém perceber logo de cara. Sapato não tinha também não e se contentava e muito em calçar seu roló já de muita pizança. Pra quem não sabe, roló em um sapato de couro cru muito apreciado pelos matutos do sertão.
Contudo, o que mais preocupava a avó era o futuro amoroso do neto, pois já rapaz feito e não tinha jeito de namorar de modo algum. Ora, as mocinhas dali, todas bonitinhas e cheirosas demais, jamais iriam lançar um olhar esperançoso para um pobretão nem aceitar de suas mãos o mais belo buquê de flores. Os próprios pais delas não consentiam que se rebaixassem aceitando na porta um rapaz que não tivesse o dote do nome familiar ou da riqueza material.
Desse modo, a pobre velhinha passava horas e horas matutando sobre o que fazer para mudar aquela situação. Já havia feito todo tipo de promessa, orado por todos os santos, se endividado de não acabar mais de tanta vela que comprou pra acender e nada de acontecer o contentamento daquele coração juvenil e virgem de tudo.
Desesperada, vendeu a vaquinha que ainda restava e no mês de outubro subiu num pau-de-arara rumo a Juazeiro do Padre Cícero Romão Batista, o Padim Pade Ciço. É nesse mês que os romeiros se dirigem ao sertão cearense para se ajoelhar aos pés da estátua do santo padre e agradecer as graças recebidas ou fazer os mais diversos e estrambólicos tipos de promessas e pedidos. A dela era muito simples: apenas que o neto arranjasse uma namoradinha.
Confiante demais que o santo padim iria atender seu pedido, desceu as escadarias com as mãos levantadas aos céus e lágrimas molhando a velha face contagiada pela fé. Como não tinha dinheiro pra comprar qualquer lembrancinha, a única coisa que conseguiu foi trocar uma moeda por uma rapadura. E fez mais, pois entrou na igreja e benzeu a rapadura.
Prometeu ali mesmo que a primeira namorada que o neto arranjasse ia ganhar dele aquela rapadura de presente. Na sua concepção de nordestina, ser presenteada com uma rapadura legítima e vinda diretamente do Juazeiro do Padim Ciço não era pra qualquer uma não.
Chegando em casa toda estrebuchada pelo cansaço da viagem, ainda assim a primeira coisa que fez foi avisar o neto da promessa feita. Então o rapazinho entristeceu de vez e chegou à conclusão que até poderia arrumar uma namorada, mas se desse aquele presente ela terminaria o namoro na hora.
A rapadura bonita e com jeito de saborosa foi colocada bem dentro do oratório. Desesperado e pensativo demais, sem saber o que fazer, o rapazinho fazia que se ajoelhava diante do oratório e ia beliscando a danada. E pedacinho a pedacinho, não durou nem dois dias e não restava nem mais sombra do objeto prometido.
Quando abriu o oratório e viu o canto mais limpo, a velha deu um grito e quase cai pra trás. Milagre, milagre, gritou. Alguma santa gostou da rapadura prometida e fez o milagre da gulodice: lambeu todinha de uma vez só. Foi essa a constatação da pobre mulher.
E foi logo avisando ao neto que esquecesse mulher desse mundo que ele já estava prometido à santa. Menos mal, pensou ele, e saiu com a boca adocicada em busca de outra boca que lhe fizesse o milagre do beijo.



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A VICÇÃO E OS LIMITES DA FICÇÃO LITERÁRIA (Artigo)

A VICÇÃO E OS LIMITES DA FICÇÃO LITERÁRIA

                                            Rangel Alves da Costa*


Quem é afeiçoado por um bom romance adentra no seu universo e acolhe de tal forma a sua história que se põe a imaginar como aquele autor conseguiu tal proeza, tamanha criatividade no desenvolvimento da história e no desenrolar das situações.
Os conceitos altamente positivos que envolvem determinados autores são criados assim, a partir da perplexidade do leitor diante de sua obra. Contudo, dependendo da escola literária a qual o autor está vinculado, muitas vezes o leitor nem imagina que a engenhosidade maior do autor não foi criar algo novo, num universo de pura criação ficcional, mas apenas transpor seus conhecimentos e suas experiências para o seu texto.
Eis que, ainda que muitos autores não queiram ou não gostem de serem chamados de memorialistas, mas tão-somente - e sob o peso da valorização acadêmica – de romancistas ou escritores ficcionistas, a verdade é que suas produções literárias se enquadram apenas no meio termo da ficção.
Quando afirmo que o que escrevem se assenta na fronteira entre a ficção e a literatura memorialista, o faço porque dificilmente o autor é autêntico naquilo que escreve, cria um universo totalmente novo, não busca exemplos já conhecidos para situar sua história. A meu ver, o rompimento verdadeiro com o conhecido ou existente, criando uma literatura sem qualquer precedente, só pode ser exemplificado nos escritores da chamada escola do realismo fantástico ou mágico.
Vejamos, então, o que seja ficção, segundo os dicionaristas e enciclopedistas: “Ficção é o termo usado para designar uma narrativa imaginária, irreal, ou referir obras (de arte) criadas a partir da imaginação. Em contraste, a não-ficção reivindica ser uma narrativa factual sobre a realidade. Obras ficcionais podem ser parcialmente baseadas em fatos reais, mas sempre contêm algum conteúdo imaginário” (Wikipédia).
A Enciclopédia Larousse define ficção como “ato ou efeito de simular, fingimento; criação do imaginário, aquilo que pertence à imaginação, ao irreal; fantasia, invenção”. Por sua vez, Ivete Walty, no livro “O que é ficção”, afirma que “Ficção seria, pois, criação da imaginação, da fantasia, sem existência real, apenas imaginária”. Pode ser vista ainda como fingimento, criação imaginosa, fantástica, pura fantasia.
Filiando-me a aspectos contidos no primeiro conceito, afirmando que obras ficcionais podem ser parcialmente baseadas em fatos reais, mas sempre contêm algum conteúdo imaginário, reafirmo que dificilmente a narrativa ficcional surge sem o autor procurar se valer do seu conhecimento sobre fatos já existentes, exemplos que já lhe foram repassados, histórias que já viveu ou presenciou.
Talvez Júlio Verne jamais tenha experimentado qualquer daquelas ações que descreve nos seus romances. Contudo, não é pouco provável que já tivesse percorrido ou visitado muitos daqueles cenários ou paisagens que tão bem descreve. Contrariamente do que ocorre na literatura de Charles Dickens, onde o pano de fundo onde se situam suas histórias é uma Londres pós-industrializada e arredores que tão bem conhecia e convivia.
Dentre nossos autores, e todos eles justamente considerados como exímios romancistas e ficcionistas, cito dois exemplos de como a ficção nasce da experiência, da vivência, da proximidade com a realidade retratada: Jorge Amado e José Lins do Rego.
A ficção cacaueira, coronelista e afro-religiosa de Jorge Amado não é fruto senão da larga convivência do autor com esses modelos dramatizados. Nascido em região cacaueira, num mundo cercado por coronéis e latifundiários, tendo ao lado sempre o jagunço e a prostituta, o que faz o escritor na sua obra nada mais é do que trazer essas memórias e costurá-las num enredo. A genialidade como faz essa costura aí é outra história.
Com José Lins do Rego ocorre a mesma coisa. As memórias do menino que passava férias no engenho, que conhecia aquele mundo, seus atores e seus dramas, foram tornados ficção pelo primeiro a partir da adição de elementos ficcionais, ou seja, dando um sentido e um desfecho diferentes àquilo que já existia na memória do autor.
O que pretendo deixar bem claro é que a ficção possui limites claros demais para que seja caracterizada como tal qualquer romance surgido da criatividade do autor. Só é ficção para o leitor, que encontra um universo totalmente novo, mas não para o autor, que na maioria das vezes faz apenas uma junção de elementos que já conhece e são recontados dentro de um contexto dramatizado.
Como já afirmado, só pode ser caracterizado como ficção, a partir dos seus limites conceituais, aquilo que surge explosivamente na mente do autor e tem o poder de causar perplexidade tanto em quem escreve – pois inusitado – como em quem lê.
A essa literatura da experiência e do já vivenciado proponho o nome de VICÇÃO. Assim, diferentemente da ficção, que se voltaria somente para o ineditismo, para a luz única que se faz, a VICÇÃO seria a literatura do já vi, já vivi.




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NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 41 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 41

                                         Rangel Alves da Costa*


Um corpo estirado, jogado, estendido, esparramado no chão. Rente ao meio feio, próximo ao canteiro, por cima da terra, perto do asfalto, no cimento da calçada, ali e acolá, ora isso ora aquilo. E ali a mulher, a vítima, a acidentada, Dona Glorita já sem vida.
Profundos ferimentos, dilaceramentos, machucados, parecia um objeto caído do alto e desfeito no chão. A alta velocidade do carro aliada à imprudência da pedestre, da mulher que às cegas quis romper a passagem dos veículos sem se dar conta do perigo, não poderia produzir outra coisa senão aquela realidade fatal. A morte.
Contudo, do jeito que estava, ofendida demais com a atitude do advogado, com o seu desrespeito e covardia, indignada com aquele gesto, fugindo da cliente quando já estava em frente a ela, foi sendo criada uma cegueira raivosa tão grande que não enxergaria um trem que estivesse chegando, uma arma que estivesse sendo apontada, um furação que estivesse já próximo. E o carro então, este nem pensou que existia quando começou a dar passos velozes para atravessar a pista e perseguir Dr. Auto.
O resultado estava ali agora. Do carro atropelador nem sombras, da vida de Dona Glorita também. E também do advogado, que seguiu seu caminho de fuga como se nada tivesse acontecido, como se não conhecesse aquela mulher, como se não tivesse culpa também por aquele funesto acontecimento. Quer dizer, pra ela, pra acidentada e morta, porque mais adiante, noutra rua, longe do aglomerado de pessoas que se formou ao redor, ele se posicionava tranquilamente ao lado de uma mureta, e de telefone celular em punho, discava com ar satisfeito para alguém.
“Nobre deputado, como vai esse grande benfeitor da humanidade, continua roubando muito dos ricos para dar aos pobres?...”. E do outro lado o larápio do parlamentar respondeu: “E me sinto cada vez mais pobre, mais precisado, mais necessitado, por isso tenho de afanar os ricos para dar a esse pobre coitado que sou eu mesmo...”. E gargalhou com enorme e desfraldada satisfação. Mas o advogado continuou.
“Não esqueça dos amigos carentes, seu Robin Hood de araque, não esqueça. Mas telefonei dessa vez por causa de um assunto muito importante, de um acontecimento inesperado ocorrido agorinha mesmo. Parece que ainda estou ouvindo os gritos da mulher se espatifando todinha no chão e o carro riscando o asfalto em alta velocidade. Eis que ficamos livres daquelas duas. A Leontina, mãe do presidiário Jozué morreu ontem, como é do seu conhecimento, e hoje outra bateu as botas. Dessa vez foi a Glorita, mão do também presidiário Paulo. A primeira morreu de ataque do coração e essa porque quis me atacar...”.
“Que conversa é essa doutor Auto?”, indagou o deputado Serapião, intrigado com essa nova informação. E ouviu:
“Pois é, a mulher saiu do escritório e quando me avistou do lado de fora veio pra cima de mim talvez querendo explicação sobre a sentença ou uma satisfação qualquer, mas como não sou besta dei a volta e voltei pro outro lado da rua, então a idiota veio atrás com tudo e não deu outra. Os carros passando em alta velocidade e ela deu as caras e então pimba. Só vi o corpo voando pra bem longe e caindo estrondosamente no chão. Acho que não sobrou nem a alma. O corpo ainda está lá todo esparramado no lugar que caiu, desfeito em sangue e nada mais. Dessa também ficamos livres...”.
“E por que dessa também ficamos livres, previdente causídico?”. O advogado não duvidava que o espertalhão já soubesse do porque, mas ainda assim relembrou:
“Ora, meu caro deputado, é tudo muito simples. Com o sumiço das provas vivas do que fizemos com aqueles dois rapazes, logicamente que mais tarde ninguém vai mais reclamar do errado nem do malfeito, não vai querer saber os motivos de tê-los enganados o tempo todo e muito menos de quem está por trás dessa safadeza toda. Já pensou se uma dessas finadas, atiçadas pela perigosa da Carmen, denunciasse a gente seja lá onde fosse, espalhasse pela imprensa o que fizemos e por que fizemos e dissesse o seu nome, o meu nome e os nomes do juiz, do promotor, do outro juiz tio da mocinha, do pai dela e também o nome do pai do verdadeiro bandido Josué, o Alfredinho Trinta Por Cento? Já pensou que sarapatel de coruja seria pra gente engolir deputado?”.
“Tem razão Dr. Auto, tem razão, mas tem aí um porém que parece que você esqueceu. Duvido que essas pobres mortas fossem abrir a boca para dizer um tantinho assim. Se fossem fazer então seria através daquela Carmen, essa mesma que me causa pesadelos. Daí, Dr. Auto, que pelo andar da carruagem pouco há que se comemorar, pois quem morreu era peixe muito miúdo, quase nada, apenas duas pobres coitadas que mal sabiam se virar na vida. As duas morreram, e daí? Agora me responda uma coisa: você já pensou em quem continua viva?”.
“Mas deputado, será que o senhor quer chegar novamente àquela história de matar a moça. Certamente que isso nos livraria de quaisquer preocupações futuras. Contudo, ela não é só uma pessoa que pode ser morta a qualquer momento. Ela não é apenas uma pessoa, tente entender isso muito bem. É pessoa sim, mas inteligente demais, perspicaz, audaz, estrategista. Ademais, tem costas largas, proteção familiar, é rica. E o senhor acha que matando ela no momento seguinte as provas contra o nosso grupo já não estariam na imprensa? Duvido que ela não guarde um testamento incriminador, um relatório contando tudo o que fizemos, uma agenda cheia de acusações e de provas. Por isso mesmo deixe a moça pra lá por enquanto, até a gente se assegurar que ela não representa perigo...”.
O deputado, pensativo do outro lado, ficou silencioso por alguns instantes. Em seguida saiu com essa: “Você não é solteiro, boa pinta, então por que não faz tudo pra conquistar o coração da moça? As mulheres apaixonadas são dominadas facilmente, emudecem, acatam tudo que o homem quiser impor. Faça isso e até poderá trazê-la para o nosso grupo...”.
E o advogado um tanto surpreendido com tais palavras, procurou dizer qualquer coisa, mas acabou falando a verdade:
“Deputado, não subestime a inteligência de uma mulher. E até hoje, no mundo real, nunca vi uma mulher inteligente que de repente passe a amar aquele que está vendo com nojo e repugnância, até mesmo porque sabe que ele não passa de um verme, de um larápio safado, de um corrupto escolado”.
“Mas pense nisso, pense nisso, senão haveremos de tomar outras providências”, afirmou o parlamentar já se despedindo. Enquanto guardava o telefone no bolso o advogado baixou a cabeça entristecido, não pelo ocorrido com Dona Glorita, mas lembrando do amor impossível que sentia por Carmen.
E mais adiante as sirenes da ambulância e do carro da polícia deixavam tudo em polvorosa. Multidões se formavam adiante. Mas era tarde, tudo tarde demais.

                                                 continua...





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sábado, 24 de setembro de 2011

SERTÃO DE DAR INVEJA (Crônica)

SERTÃO DE DAR INVEJA

                                Rangel Alves da Costa*


Por mais que tenha havido certos exageros nos relatos nordestinos que povoaram a história contada na novela Cordel Encantado, a audiência espetacular e o reconhecido gosto da maioria pelas proezas do povo sertanejo, já servem para exemplificar o poder encantador que possui o sertão.
Seguindo na exemplificação, aquilo que se viu em aspectos do entrelaçamento do pano de fundo da novela não foi nada de novo. O que houve, isto sim, foi uma relembrar do que é tão próprio do povo nordestino e faz parte de sua história e sua cultura.
O sulista se encantou com a história não porque a mesma se voltou para uma realidade inovadora ou um realismo fantástico, meramente fantasioso, mas sim porque foi despertado para a existência de muitos valores nordestinos que ele próprio sempre relegou ou nunca se permitiu dar o devido valor.
Ora, o que pareceu magistral inventividade das autoras nada mais foi do que a exploração, num misto de ficção e realidade, do conceito que se alastra pelo sertão: o próprio sertão, com seus mitos, lendas, folclore, tradições, histórias e até estórias. Daí o lugar do cangaço, do cangaço, da fé e da religiosidade, do fanatismo, do beato predizendo as coisas do mundo, daquele que vive percorrendo as feiras e caminhos para dizer da sorte do povo.
Mas a novela acabou, e agora? Será que o sulista vai esperar a próxima trama global para reencontrar o sertão e suas realidades? Talvez sim, pois a memória da maioria da população é curta demais, não costuma alcançar além do momento ou do que a televisão joga-lhe na cara. Ademais, só costumam enxergar o sertão através do noticiário e das mazelas que se espalham nas suas vertentes mais irreais.
Conhecer o sertão é vivenciar sua realidade, conhecer o seu povo e se inteirar, ao menos, de parte de sua história. Toda crítica ou aplauso que se faça ou se dê necessita ser fundamentada, sob pena de preconceito, inverdade ou pura mentira. Não esquecendo de que as realidades, numa visão etnocentrista, devem ser vistas dentro de suas próprias perspectivas e não segundo os ditames, anseios e interesses daquele que simplesmente está ou vê.
A novela acabou, é verdade, então que tal agora começar a sentir que se houve encantamento com a história bonita de um povo valente, alegre e estranhamente belo, tudo aquilo não passou apenas de um mote, de uma motivação, e que a realidade pode ser ainda mais fascinante? Os livros, os jornais, a televisão, o cinema, o disse-me-disse da cidade grande é quase nada diante da realidade vivenciada.
Há um sol mais quente, mais ardente, mais assustador em certas ocasiões, sim; há uma pobreza que se alastra pelas distâncias e um povo faminto e de olhar entristecido sim; há um mundo diferente e desconhecido sim; há um sertão que ainda não foi conquistado sim. Mas também, e muito mais, há um deslumbramento em cada olhar, uma história bonita em cada ouvir, uma saga de luta e de grandeza em cada acreditar.
Jorge Amado já relatou as proezas pela conquista da terra, seus coronéis e as belezas de um povo que não se cansa de guerra; Graciliano Ramos já mostrou o sertanejo na sua triste sina da luta pela sobrevivência em meio à desolação do tempo; José Lins do Rego já mostrou como era a vida noutros tempos de engenhos e de moleques traquinas. E só para citar estes autores que não somente descreveram seu berço com maestria, mas principalmente mostraram ao mundo qualidades essenciais e características do povo nordestino.
Digo sem medo de errar que não há no País inteiro uma cultura mais rica do que a nordestina, uma história mais corajosa do que a sertaneja, uma vida mais dignamente autêntica do que o do matuto, do caipira, do homem pisando na sua aridez. Quem não quiser acreditar, que venha conhecer tudo isso em versos de cordel, nos livretos pendurados no barbante no meio das feiras, nas cantorias e nos repentes de um povo que não desafina nunca.
Gente boa é esse povo, e quanta história pra dar e vender, pra transformar em novela e o povo se admirar. E já imaginaram se escrevem um folhetim televisivo misturando de uma só vez personagens como Luiz Gonzaga, Mestre Vitalino, Padim Ciço, Lampião e Maria Bonita, Antonio Conselheiro, Patativa do Assaré, Cego Aderaldo, eu e você, todos nós sertanejos?
Como diz Patativa, cante lá que eu canto cá. Primeiro conheça, pra depois falar do meu lugar!




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Rendas e bordados (Poesia)

Rendas e bordados



No travesseiro tinha o nome
na toalha tinha o nome
no cobertor tinha o nome
o nome estava em todo lugar
desenhado no canto do pano
com letras ponto a ponto
tomando a feição do nome
e tudo riscado e trabalhado
na agulha e na costura
no dedal de metal brilhoso
na vida que se acostumava
a esperar a hora do entardecer
assim que o sol esfriava
e a cadeira de balanço
balançava na beira da calçada
numa prosa com a vizinha
num boa tarde à comadre
no ponto que feria o dedo
na ponta que puxava a linha
na linha que puxava o nome
e que deveria ser sempre
rendado e bordado apenas
com o nome mãe.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 40 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 40

                                         Rangel Alves da Costa*


A filha de Dona Glorita dessa vez não pôde acompanhar a mãe e esta chegou sozinha ao escritório do advogado. Já havia rezado em casa, na igreja e silenciosamente em cada passo que dava. Também já havia falado com Carmen e através desta, em outro instante, já tomado ciência do que poderia acontecer.
E o que aconteceria, indubitavelmente, era a máxima condenação. Contudo, mesmo com tanta certeza e sem milagres diante da desastrada defesa produzida por Dr. Auto, ainda assim brilhava uma luzinha de esperança lá no fundo do coração dessa mãe sempre aflita e angustiada.
Ora, mas já sabia de tudo, já estava preparada para o pior, mas ainda assim insistia em resguardar dentro de si essa pontinha de esperança. Coisa de mãe, sempre de mãe e sua inabalável fé que o melhor sempre possa acontecer em favor do seu filho. Neste sentido, um velho sábio dizia que a mãe é relógio e tempo para uma família, estava no passado, no presente e no desejar o melhor no futuro; é a crença quando tudo já está desacreditado; é aquela que pressente as sombras e afasta-as para que não se perca o caminho da luz.
Verdade é que a pobre mulher ainda acreditava naquela possível reviravolta defendida mentirosamente pelo safado do advogado. Assim, chegou ao escritório mostrando firmeza e dizendo a si mesma que manteria a calma em qualquer circunstância. Cumprimentou a secretária e até brincou com o ar diferente que se sentia no ambiente, todo aromatizado, perfumado como se o local tivesse passado por uma limpeza geral. Não sabia a mulher o porquê disso ter acontecido.
Em seguida disse à mocinha que havia marcado com o Dr. Auto naquela manhã pra tratarem sobre o processo do filho Paulo. Também não sabia que ele já havia mantido contato telefônico para que a moça dissesse à cliente que naquela manhã tinha uma audiência muito importante e que, portanto, talvez só retornasse bem mais tarde ao escritório. E ainda que ela retornasse no dia seguinte quando, já com a sentença em mãos, discutiriam sobre a decisão do juiz.
Contudo, mais uma mentira do advogado. Havia participado de audiência sim, mas logo cedo, numa marcada para as 07h30min, dando tempo de sobra para retornar ao escritório e atender os clientes. Mas dessa vez a mentira foi muito mais por medo do que por outra coisa. Pelos erros cometidos, as tantas e reiteradas mentiras, já temia mesmo encontrar com mais essa mãe. Também não podia esquecer-se do acontecido no dia anterior com Dona Leontina.
Mas o medo maior era de que Carmen, já sabendo de tudo e tendo feito amizade com a falecida e com Dona Glorita, tivesse colocado na cabeça desta verdades dolorosas e ensinado como tratar o advogado na próxima visita que fizesse. Só de pensar em ser desmascarado, achincalhado, chamado de tudo que não prestava, e com razão, já o deixava demasiadamente medroso, nervoso, agitado demais, até mesmo com vontade de matar aquela pobre mulher que poderia ser a responsável pelo começo de sua ruína.
Desse modo, no retorno do fórum ficou matando o tempo em outros lugares para ver se ficava livre daquela mulher ao menos naquele dia. Se a secretária insistisse para que retornasse no dia seguinte, então certamente ela não ficaria ali a manhã inteira. Contudo, quanto mais a moça dizia que achava melhor ela voltar amanhã ou outro dia mais ouvia que esperaria mais um pouco, que diante da situação até dormiria ali esperando.
Ora, mesmo achando um desrespeito incomparável aquela atitude do advogado e muito estranho que nunca voltasse do fórum, resolveu que já que estava ali ficaria até mais tarde, até o instante que fosse convidada ou forçada a deixar o escritório. Então, quando passou do meio dia sem o retorno do advogado, a moça falou que não havia mesmo jeito e desculpasse mas teria de fechar o ambiente e sair para o descanso do almoço. E assim Dona Glorita levantou sem dizer nada e saiu porta afora, toda se corroendo por dentro, cheia de raiva, ódio, vontade de dizer um monte de coisas à secretária. Mas preferiu relevar e saiu dali levando a sua dor.
Lá fora, nas proximidades do escritório, depois de olhar para o relógio e constatar que já passava do meio dia, então Dr. Auto se encaminhou calmamente para o seu ambiente de trabalho, pois precisava ir até lá apanhar uns papéis. A essa altura já tinha máxima certeza que Dona Glorita já havia saído de lá há bastante tempo, pois ninguém em sã consciência iria esperar alguém aquele tempo todo se a secretária havia dito para voltar depois.
Assim, o causídico já tinha atravessado a movimentada rua quando olhou adiante, na porta do seu escritório, e percebeu que a mulher acabava de sair de lá e já estava na calçada, uns cinco metros à frente. Parou repentinamente, tentou ficar de costas, mas já tinha sido avistado e reconhecido.
Mas o que o advogado fez no momento seguinte foi algo terrível para Dona Glorita. Dr. Auto procurava fugir e ela o seguia chamando pelo nome, até que ele resolveu passar correndo no meio dos carros em movimento e chegar ao outro lado. E, desnorteada do jeito que estava, seguiu apressada atrás dele, enfrentando os perigos dos carros velozes, porém sem enxergar mais nada ao redor.
E foi tamanho o choque que o corpo da mulher foi cair perto do canteiro, no outro lado da rua, onde já estava o advogado. E este agora caminhando tranquilamente sem olhar pra trás.

                                                    continua...






Poeta e cronista
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