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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 42 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 42

                                         Rangel Alves da Costa*


Como havia acertado com Dona Glorita que ao entardecer faria uma visita para conversarem sobre a ida dela até o escritório do advogado, Carmen procurou telefonar antes para dizer que já estava de saída e que não demoraria muito para chegar.
Telefonou uma, duas, dez vezes e ninguém atendia do outro lado. Cismada com esse silêncio intrigante, vez que sabia que a mulher não deixaria de atender os seus telefonemas, resolveu ir também para saber se estava acontecendo alguma coisa inesperada, algum fato estranho. Ela mesma já nervosa, preocupada demais.
Ora, era realmente de causar preocupação quando sabia que ela já havia estado no escritório e não era impossível que pudesse ocorrer o mesmo que havia acometido a finada Leontina. Diante daquela situação, a mulher talvez tivesse se sentido mal ou acontecido algo pior. Contudo, jamais imaginaria que o desenlace daquela situação seria infinitamente pior.
Assim que enveredou pelos caminhos distantes para chegar logo à comunidade do Quase Paraíso, onde ela morava, talvez pelas preocupações que a acompanhavam chegou que nem sentiu os quilômetros rodados. Entretanto, assim que entrou na ruazinha onde ficava a casa logo sentiu que algo realmente diferente havia acontecido.
A casa estava com a porta e janelas fechadas e pessoas reunidas à frente conversando nervosamente, com ares entristecidos, gestos afobados, lágrimas escorrendo pelos rostos, numa desanimação só. Desceu correndo e foi procurar saber do que se tratava e ouviu a notícia ruim, danada demais, coisa de não querer se acreditar.
“Moça, aqui, nós que somo amigo e a vizinhança toda tá sem agüentar e nem acreditar no que ficou sabeno. A mais de pedaço chegou um carro da polícia por aqui procurano o endereço de Dona Glorita e ficamo inté com medo de que tivesse acontecido outra coisa ruim, mai foi muito pior. Os policial desceu procurano os parente dela porque havia acontecido uma tristeza, uma coisa muito ruim com a nossa amiga. Dissero que ela tava lá na cidade, bem no centro da cidade, quano foi atropelada por um carro e morreu. Num foi coisa nem de prestar socorro no hospital, num tinha mai jeito. Por isso que veio inté aqui pra ver se encrontava algum parente de maior que é pra ir lá num lugar que ele disse o nome pra fazer o reconhecimento do corpo...”.
Carmen não estava nem mais ouvindo as informações repassadas pelo velho morador. O susto foi tamanho que ficou como que paralisada por instantes, ouvindo todo o relato sem demonstração de qualquer reação, e só depois, quando voltou à realidade, que mentalmente tomou realmente ciência do que tinha ocorrido, então gritou desesperadamente por dentro. Sentiu o seu âmago se desfazer em pedaços, uma aflição se espalhar. E uma dor lhe tomou o peito que foi preciso se segurar no ombro de alguém para não desmaiar.
Foi-lhe trazido um copo de garapa, que virou de um gole só, procurou respirar bem fundo para retomar o fôlego e só depois conseguiu falar, porém com a voz entrecortada:
“Então disseram que houve um acidente, ela foi atropelada e morreu. E vieram aqui para ver se encontravam a filha para ir até o Instituto Médico Legal fazer o reconhecimento da mãe. Que notícia pra mocinha receber, mas ela deve estar trabalhando, não é mesmo? Acho que eles vieram até aqui avisar porque encontraram o endereço na bolsa. Ao menos isso restou e teve alguma serventia. Mas vocês sabem me dizer onde ela trabalha, a mocinha? Preciso saber porque talvez eles não tenham encontrado e preciso avisar a ela cuidadosamente. Seria até bom que a polícia não tenha ido até lá, pois ninguém sabe como eles podem dar essa difícil notícia aos parentes. E de repente ao invés de uma só pode até morrer mais gente. Então, se souberem me digam onde ela trabalha...”.
Mesmo sentindo-se muito mal com a confirmação da notícia, se dirigiu até o carro no intuito de ir localizar o endereço onde a mocinha trabalhava. Nas proximidades do Quase Paraíso, não foi difícil encontrar. Contudo, a polícia já havia estado ali e até se ofereceu para conduzi-la até o instituto responsável pelas necropsias e laudos cadavéricos. Então a essa altura ela já estava no IML para fazer o reconhecimento do corpo da mãe. Que tristeza, meu Deus! Era a expressão do sentimento de Carmen.
Continuando completamente atordoada, ainda assim antes de sair do local perguntou às angustiadas colegas de trabalho como ela havia recebido a notícia e como estava se comportando mental e fisicamente ao sair dali. Nenhuma das amigas conseguiu, por mais que tentasse, responder à indagação. Apenas choro, gestos angustiados e palavras inaudíveis pelas gargantas sufocadas. Não precisavam dizer mais nada.
Assim que adentrou as dependências do IML, tentando enxergar em meio a tantos rostos doloridos e tomados por lágrimas, palavras de aflição e até gritos, a mocinha filha de Dona Glorita, andou de um canto a outro e nem sinal dela. E quando já ia se dirigindo até a recepção então ouviu uma voz vindo de um cantinho de parede, lá no fundo, bem no escondido:
“Dona Carmen”. Ao ouvir o seu nome e se virar para saber de onde vinha aquela voz, avistou a própria transfiguração em pessoa, apenas parecendo um resto de gente sentada no chão e como que enrolada nas próprias pernas. No cantinho, transtornada, completamente fora de si, com as feições que nem pareciam de gente, estava a mocinha, a filha de sua amiga Glorita. A filha ali, naquele estado piedoso, e a mãe lá dentro, morta.
“Oh, minha filha!...”, e Carmen correu naquela direção e se jogou ao chão, se juntando a ela na dor. “Dona Carmen, minha mãe saiu de casa com saúde para resolver um problema e olhe aonde veio parar...”. “Se acalme minha filha, se acalme, tenha forças. Nesse momento é preciso se apegar ainda mais em Deus para ter as forças necessárias. Mas você já foi chamada para fazer o reconhecimento?...”.
“Não, e nem vou. Quero minha mãe como ela é, quero encontrar ela em casa, quero abraçar e dizer que estão brincando comigo. Diga que tudo isso é mentira, é brincadeira de mau gosto, é alguma invenção, diga Dona Carmen, diga...”.
“Não, infelizmente é tudo verdade. Mas deixe que providencio o reconhecimento. Agora venha, levante...”. E depois de confortá-la um pouco mais, deixou a mocinha sentada num banco e se dirigiu para outras dependências do instituto.

                                                    continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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