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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A TELA E AS CORES DOS SENTIMENTOS (Crônica)

A TELA E AS CORES DOS SENTIMENTOS

                                              Rangel Alves da Costa*


Difícil imaginar qual seria o resultado se uma tela em branco fosse colocada sobre um cavalete numa praça e quem fosse passando por ali ser chamado a pegar no pincel, utilizar a cor de tinta que quisesse e em poucos traços pudesse expressar seus sentimentos.
A paleta ao lado contendo todas as cores possíveis, pincéis sempre novos para os artistas de momento utilizá-los, bastando que cada um mostrasse na cor escolhida e no traço seu estado de sentimento.
Não haveria de se negar nada, mas exprimir realmente o que o momento deixava aflorar no espírito. Tristeza, angústia, alegria, solidão, fome, felicidade, ódio, frustração, loucura, dor, saudade, paz, contentamento, fúria, rancor, ira, placidez, serenidade, indecisão, placidez....
Um menino sujo, de roupa rasgada, rosto entristecido e sem qualquer brilho no olhar, se aproximou, viu a tinta e o pincel ao lado e num instante, num traço veloz, desenhou uma moeda.
Outro menino, esse acompanhado da mãe e bem nutrido corporalmente, de bochechas rosadas e esbanjando alegria, segurou outro pincel, escolheu a tinta marrom e rabiscou uma mão pegando a moeda desenhada pelo outro menino.
Chegou uma mocinha triste, de flor na mão e talvez o coração apaixonado, dessas que caminham sempre ao entardecer procurando razão para a felicidade e sonhando com o fugitivo príncipe encantado, segurou levemente o pincel e fez surgir uma lágrima.
Não demorou muito e estava ali uma velha senhora, se segurando na sua bengala, fazendo a sua caminhada diária em busca de melhorias para as muitas doenças que lhe acometiam, olhou a tela por um instante e quase chorando pintou um olho de modo que do seu canto descesse aquela lágrima.
Em seguida passou por ali um menino de rua sem camisa, pois a que tinha servia para esconder um frasco com alguma substância tóxica que incessantemente levava ao nariz para cheirar, olhou para um lado e outro e calmamente deitou uma pessoa na tela. Parecia que estava deitado flutuando no espaço.
Atrás vinha um rapaz com um livro grosso na mão, de óculos de muitos graus sobre os olhos, talvez um interessado pelas indagações da filosofia ou pelos pensamentos contrastantes da vida, olhou na direção do menino que se afastava, segurou no pincel e fez aparecer na tela uma cama, bem abaixo onde a pessoa pintada pelo menino estava deitada.
Instante depois passou por ali uma moça vestida de hábito, talvez uma freira pela vestimenta e pelo jeito simples de ser e na calma do andar, ficou olhando o que já estava pintado na tela e se resolveu, timidamente, dar também a sua contribuição. Então pintou um pão.
E veio caminhando naquela direção um mendigo, com ares ainda de mocidade, porém fruto dessas inexplicáveis consequencias da sorte desigual para muitos, carregando nas costa sua bolsa de esmolas e no olhar um interesse danado pelo que a freira havia desenhado. Olhou para o pão na tela, mexeu os lábios como se estivesse com fome, e prontamente desenhou uma boca querendo engolir o pão.
Logo chegou uma madame, toda enfeitada como se estivesse passeando pelos mais chiques salões, tendo ao lado um empregado para carregar seu cachorrinho de estimação nos braços, avistou de longe a tela e se aproximou para senti-la mais de perto. Ora, sabia tudo de arte. Achou interessante, mas mandou que o empregado molhasse uma das patas na tinta e depois firmasse o pezinho do lulu na tela. E lá ficou pintada a pata do cachorro.
Observando ao longe a atitude da madame, assim que esta se retirou com o seu cachorrinho, o mesmo mendigo, parecendo realmente faminto, retornou, viu a pata do cachorro ali na tela e resolveu inovar. Pintou um pão aberto, tendo a pata do animal ao meio. Na sua concepção era um cachorro quente.
Na manhã seguinte a tela ainda continuava no mesmo lugar da praça. O mendigo também, pois ficara a noite inteirinha ali costurando uma ideia interessante. Então, como não aparecia dono, pegou a tela e tomou posse. Sentou num banco e colocou-a ao lado, à venda.
E apareceu a madame correndo, esbaforida, pois não havia dormido à noite lembrando que aquela pintura despretensiosa, mas tão significativamente pintada, certamente valeria milhões de dólares. E deu apenas um dinheiro ao mendigo pela grande obra.
Dinheiro bastante para comprar dois pães: o desenhado pela freira e o do cachorro quente.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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