SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 3 de setembro de 2011

DE UM DIÁRIO ACHADO NUM BAÚ SERTANEJO (Crônica)

DE UM DIÁRIO ACHADO NUM BAÚ SERTANEJO

                                          Rangel Alves da Costa*


É até difícil de se acreditar que dentre os habitantes de uma recém formada povoação sertaneja, lá pelos tempos que havia paz, num passado distante a se perder de vista, alguém fosse letrado, sabendo escrever direitinho e sabendo mais ainda o que estava escrevendo.
Verdade é que sem querer, exatamente nos escombros de uma das primeiras residências levantadas onde se dera o marco da civilização sertaneja do São Francisco, num terreno mais alto em meio à caatinga, mandacaru e xiquexique, um visitante da história encontrou um pequeno objeto que se tornaria de muita valia para o conhecimento do cotidiano daquelas primeiras povoações.
Não foi exatamente o visitante que fez o achado, pois assim que chegou na hora do sol brilhoso à casa de um velho sertanejo, local bem vizinho ao escombro da morada antiga, chamando da porta apenas encostada para pedir uma informação, não pôde fugir de um dedo de prosa. E enquanto conversavam na sala de barro caindo aos pedaços, o jovem avistou um pequenino baú em cima de uma mesinha e o interesse foi logo despertado.
Então pediu licença para ver o objeto mais de perto e assim que segurou o baú nas mãos foi logo perguntando que idade deveria ter aquela relíquia. E o velho sertanejo, na sua sinceridade habitual, foi logo dizendo que aquilo ali estava pra ser jogado fora, pois havia sido achado dentre as velharias da casa vizinha, mas como ninguém sabia ler o que tinha dentro, então não tinha nenhuma valia. Ia para o monturo.
Sem saber que tipo de escrito havia ali dentro, mais uma vez o rapaz pediu licença para abrir a tampa de madeira magnificamente trabalhada e quando abriu o pequeno caderno ali encontrado, já num difícil estado de conservação, cuidadosamente levou-o diante dos olhos e sorriu pausadamente.
O sertão antigo, o sertão de antigamente estava ali em sua frente, sendo folheado, tocado. E como estava áspero, velho, quase sumindo aquele sertão de antigamente. Mas também que lindo sertão, simples, pacato, humilde, grandioso demais nos atos de sua gente, e esta de iguais qualidades e características. E se pôs a ler:
Muita sorte a desse povo sertanejo que mora por esses lados. Parece que o bom Deus botou a tábua de salvação nas mãos de tantos desvalidos. Seco demais quase o ano todo, e de tempo em tempos passando mais de três anos sem uma gota de chuva, mas ainda assim o vaqueiro, quando chega o entardecer, sai aboiando e chiqueirando o seu gadinho até o leito do riacho seco. Quem olha só vê areia, nem uma porção de água num poço, mas basta cavar dois palmos e a água salobra começa a brotar alvinha. Então o gado bebe parecendo que é a coisa melhor do mundo. E depois o vaqueiro retorna feliz da vida porque, mesmo sem ter água em casa nem no pote nem na moringa, ainda assim não deixou seus bichinhos com sede. É assim nesse sertão...”.
“Acho bonito demais a vida desse povo daqui. Pra sobreviver não se cansa e nem se farta de procurar o que fazer. Comadre Maria achou barro liguento num barreiro e toda santa manhã desce pra o lado de lá pra fazer seus potes, suas moringas, seus tachos. Depois de tudo secado no sol que tem por demais, traz tudo na cabeça pra olaria de Cardoso. O homem que faz umas poucas telhas na beira do riachinho, aproveita e ajuda a mulher colocando tudo numa queimada só. Já Zuleica de Zé Vicente deu pra juntar sebo de vaca e agora faz sabão em barra pra vender. Juquinha de Totó sai pro mato e volta com o cesto cheio de remédio natural, do mastruço, da erva-cidreira, da raspa do angico e da aroeira. Mas se engana se pensa que ele faz garrafada pra curar doença braba, mas sim colocar as ervas em litros e depois encher de aguardente. Tem tanta gente que aprecia que até já botou uma bodeguinha só de cachaça com casca de pau...”
“A coisa mais bonita de se vê nesse sertão de meu Deus é o ofício da Jurema, viúva do vaqueiro Beraldo Aboiador. Não sei se a mulher tem mãos de fada, de médica ou enfermeiro, mas a verdade é que como parteira não tem igual. Dizem que já fez nascer mais de vinte meninos só por aqui nas redondezas, mas acho que muito mais. E muito mais porque todo menino que vejo chama a boa mulher de madrinha e dá a benção. E como todo mundo sabe, quem faz o parto do menino tem de ser chamada pra ser madrinha. Se não for, mais tarde vai ter doença ruim. É, aqui no sertão é assim...”.
Mas aquilo que leu era só o começo, pois o diário era extenso e, mesmo já muito envelhecido, era de fácil leitura, principalmente porque quem o havia escrito certamente era pessoa estudada. Mas quem, meu Deus do céu, quem naquele sertaozão nos seus tempos iniciais de colonização teria condições de escrever tão bem naquele diário?
O visitante, continuando admirado demais, perguntou ao velho sertanejo se ele sabia quem havia escrito aquilo ou se noutros tempos, num passado muito distante, alguma pessoa estudada havia morado ali. E o homem respondeu sem pensar duas vezes:
“O rapaz não sabia não? Os mais velhos diziam que aqui morava um rei muito inteligente e o nome dele era Sebastião, vindo de outras terras além-mar, depois chamado até de São Sebastião. Dizem que era primo do avô de Virgulino Lampião e também do de Antônio, o Conselheiro. Como se vê, era uma família inteligente demais”.



Poeta e cronista
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