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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 45 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 45

                                         Rangel Alves da Costa*


O advogado não jogou o telefone na parede como da outra vez, espatifando-o completamente. Dessa vez, ainda que mais afetado mentalmente, deixou apenas que o mesmo caísse da mão sobre o vidro da mesa.
Diante dos absurdos cometidos, das mentiras que pareciam não dar em nada, vez que Carmen parecia estar investigando tudo, estava realmente sem saber o que fazer. Não poderia ficar enraivecido, pois ódio de que, se ele mesmo havia dado causa àquilo tudo? Contradizer, brigar, rebater raivosamente por que, se a sua razão não suportava outra palavra da moça? Ameaçar, prometer vingança ou mandar calar de vez sob pena de acontecer o pior por que, se havia autorreconhecimento que era verdadeiramente crápula, safado, corrupto?
Mas não podia ficar assim. O problema é que não podia ficar assim. E um problema talvez ainda maior do que poderia imaginar, pois ninguém sabia até onde ela ia com essa história de investigar a defesa dos dois rapazes feita por ele e os motivos que a levaram a serem tão desastradas, ao ponto de ajudar na condenação.
Claro estava que ela já havia descoberto muita coisa. Já sabia, por exemplo, que ele enganara as duas mães o tempo todo, que ele não havia defendido os dois coisíssima alguma e principalmente que havia uma mancomunação entre ele e o juiz para condenar os dois clientes. Mas aí era somente a ponta do iceberg, vez que desastre mesmo seria se Carmen chegasse aos nomes e as motivações de todos os envolvidos. Os nomes eram influentes demais, tanto no judiciário como no legislativo e no meio empresarial, sem falar na própria classe advocatícia que estava sendo enlameada pelos atos corruptos dele.
Não tinha dúvidas que se ela fosse mais adiante e descobrisse que o líder, o cabeça daquela conspiração mafiosa toda era o Deputado Serapião Procópio, os seus dias estavam contados. E também não sobreviveria se os nomes dos dois juízes, do promotor e dos empresários estampassem as manchetes dos jornais. Mas o que fazer, meu Deus, o que fazer agora? Era a indagação que gritava, surgida com a maior aflição do mundo, chegando a baixar a cabeça sobre a mesa, em total desespero, indo ao extremo de esboçar uma oração.
Mas não lembrava mais de nada, de nenhum salmo e nenhuma prece. Há muito que havia esquecido o conforto das palavras divinas para pensar somente nele, em si próprio, como fosse o deus de si mesmo. E de repente lembrou que num daqueles armários havia uma bíblia. Levantou, procurou, encontrou-a e abriu numa passagem que há muito tempo estava marcada com uma fitinha. Era o Salmo 86, Oração de Davi:
Inclina, Senhor, os teus ouvidos, e ouve-me, porque estou necessitado e aflito.
Guarda a minha alma, pois sou santo: ó Deus meu, salva o teu servo, que em ti confia.
Tem misericórdia de mim, ó Senhor, pois a ti clamo todo o dia.
Alegra a alma do teu servo, pois a ti, Senhor, levanto a minha alma.
Pois tu, Senhor, és bom, e pronto a perdoar, e abundante em benignidade para
todos os que te invocam.
Dá ouvidos, Senhor, à minha oração e atende à voz das minhas súplicas.
No dia da minha angústia clamo a ti, porquanto me respondes.
Entre os deuses não há semelhante a ti, Senhor, nem há obras como as tuas.
Todas as nações que fizeste virão e se prostrarão perante a tua face, Senhor,
e glorificarão o teu nome.
Porque tu és grande e fazes maravilhas; só tu és Deus.
Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade;
une o meu coração ao temor do teu nome.
Louvar-te-ei, Senhor Deus meu, com todo o meu coração, e glorificarei
o teu nome para sempre.
Pois grande é a tua misericórdia para comigo; e livraste a minha alma
das profundezas da região dos mortos.
O Deus, os soberbos se levantaram contra mim, e as assembléias dos tiranos
procuraram a minha alma, e não te puseram perante os seus olhos.
Porém tu, Senhor, és um Deus cheio de compaixão, e piedoso, sofredor,
e grande em benignidade e em verdade.
Volta-te para mim, e tem misericórdia de mim; dá a tua fortaleza ao teu servo,
e salva ao filho da tua serva.
Mostra-me um sinal para bem, para que o vejam aqueles que me odeiam,
e se confundam; porque tu, Senhor, me ajudaste e me consolaste”.
Leu com temor e reverência, é verdade, contudo parecia que as palavras bíblicas eram desconhecidas demais, difíceis demais de serem alcançadas e principalmente aquele livro sagrado lhe pesava nas mãos como uma imensa caixa de aço. Por que, se ali nas escrituras estariam os refrigérios da alma, o conforto dos aflitos, o abraço aos desamparados e infortunados? Ora, simplesmente porque a palavra divina não serve como escudo ou cobertura para se fazer o mal e repentinamente buscar nela um abrigo. Muito pelo contrário.
Tanto era assim que não demorou muito para a bíblia ser esquecida, o salmo jogado ao vento e a fé deixada de lado. E passou a delinear um contra-ataque àquela situação. Ou tudo ou nada, disse aos botões. A primeira coisa a fazer era tentar esquecer completamente o amor que sentia por ela.
Depois, numa relação de diferentes, a procuraria para, amigavelmente, buscar um acordo onde ninguém saísse prejudicado. Até pediria perdão se fosse preciso, ficaria de joelhos se fosse conveniente, prometeria até o impossível para que ela não seguisse adiante com sua obsessão investigativa e chegasse a prejudicar sua carreira, o seu futuro profissional. Diria que este estava nas mãos dela. E evidentemente que estava.
Contudo, se nada disso desse certo lavaria suas mãos. Ou melhor, sujaria ainda mais, pois passaria a concordar com o que o deputado fizesse o que há muito pensava fazer com ela. Não sabia até onde a velha onça poderia chegar, ou talvez soubesse. Verdade é que boa coisa não poderia ser, e disso tinha certeza. Sabia que ela não merecia isso, mas na guerra não há lugar para piedades. E aquilo já estava se transformando numa batalha terrível.
Contudo, não sabia o ilustre causídico que Carmen Lúcia, agora mais revoltada e enraivecida ainda, já estava pronta para colocar em ação outras estratégias de guerra. Assim, ainda naquele mesmo dia, já no finalzinho da tarde, se dirigiu até a Rua Outono, o mesmo logradouro onde ficava o escritório do Dr. Auto.

                                                 continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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