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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 17 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 17

                                         Rangel Alves da Costa*


Se pudesse, após ouvir as últimas palavras entremeadas de falsidades, Carmen daria um murro certeiro na cara de mentiroso do advogado, ainda que seu patrão. O mau-caratismo não possui hierarquia nem subordinação. Completamente tomada por uma aversão quase descontrolada com relação ao dito, para o bem resolveu apenas que já estava na hora de se retirar para o almoço.
Saindo rapidamente evitaria o pior, não correria o risco de dar com a língua nos dentes e esculhambá-lo ali mesmo, naquele momento, jogar-lhe na cara um monte de coisas que estavam entaladas na garganta, dizer que ele não valia a distinção de advogado que ostentava e muito menos o respeito dos clientes, principalmente daquelas duas mães. Já ia juntando as coisas para sair quando lhe foi afirmado:
“Minha cara Carmen, pelo jeito você não acreditou muito nas minhas palavras. Não fico afetado com nada disso. Sempre dizem que advogado tem duas caras, duas conversas, é um mentiroso instintivo, coisas desse tipo. Digo, porém, que existe o advogado no homem e o homem no advogado, e dessa vez quem lhe falou foi o homem no advogado, que não iria mentir de jeito, principalmente para uma pessoa igual a você”.
“Mas eu não pensei nada Dr. Auto, e não pensei porque o senhor é dono de sua própria verdade e a expressa como bem entender. Não estou aqui para julgar seu caráter nem o que faz ou deixa de fazer, mas acho que não seria nada demais ser mais realista. Ou será mentir viver a realidade, aceitar que são outras as verdades e ter a consciência que a perfeição não cabe em nenhum ser humano terreno e, por isso mesmo, o reconhecimento dos erros é uma forma humilde e inteligente e de se arrepender dos pecados cometidos e se aproximar mais da pureza da consciência?”.
Dr. Auto agitou-se no mesmo instante, começou a ficar nervoso e, sem saber até onde ela queria chegar com tais palavras, pediu para que fosse mais clara. Então Carmen, que já havia perdido a fome mesmo e agora ganhava força para dizer-lhe logo umas verdades, colocou a bolsa novamente em cima da mesa, afastou-se um pouco do birô e disse:
“Quem é que cabe ali dentro daqueles móveis com tantos processos dos clientes, é o advogado ou o senhor? Quem procura resolver todas aquelas questões, dirimir aqueles conflitos, buscar justiça para aqueles clientes, é meramente o advogado ou também o homem? Quem conversa e diz a verdade sobre os processos com os clientes, é simplesmente o advogado ou também o homem? Agora a pergunta que não quer calar: quem está aí agora mentindo, falseando quase tudo que diz, é o advogado ou o senhor?”.
Dr. Auto ficou com uma indescritível feição, ainda em pé, encontrou um lenço no bolso e procurava enxugar o rosto que suava em goteiras. Vermelho ou de indefinida cor, agitado, não abria a boca para nada, parecendo ter perdido todas as forças de expressão. Mas Carmen continuou:
“Talvez tanto o advogado como o homem sejam corretos demais, insuspeitáveis, mas é nesse aspecto que mora toda fragilidade humana. Enquanto o homem advogado passava tranquilidade aos seus clientes, dizendo que tudo ia bem, tudo ia ser resolvido o mais rapidamente possível, o advogado homem vinha sendo criticado pelos clientes, que por muitas vezes vieram até minha pessoa reclamando de um monte de coisas, falando das desconfianças e do medo que se abatiam diante das incertezas. Ora, os processos estão todos copiados ali e o senhor é a maior testemunha do que fez ou deixou de fazer. Desse modo, se o homem advogado se acha o verdadeiro rei, saiba que o advogado rei está muito, mas muito sujo mesmo perante o reinado do advogado homem. Um dos dois precisa mudar, ou talvez os dois, porque o que foi dito àquelas pobres mães nem um o mais vil crápula diria a um condenado, quanto mais uma pessoa quis se diz advogado tão honesto...”.
Nesse momento ele não suportou e encontrou forças para dizer alguma coisa: “Mas você andou remexendo nos processos daqueles dois, você foi bisbilhotar em assuntos que somente a mim dizem respeito? Você sabe que naquelas pastas estão verdadeiros segredos e que somente eu posso ter acesso...”.
“Mas eu sempre tive acesso a tudo que há nesses arquivos. Ademais não podia trabalhar sem estar remexendo e revirando tudo aquilo ali e o senhor bem sabe o quanto de peças já produzi a partir daquela documentação. Mas uma coisa eu posso lhe garantir agora, para ver se tira de vez essa inexplicável tensão: nunca revirei, olhei ou remexi numa página sequer dos processos envolvendo Paulo e Jozué. Quanto a isso pode ficar despreocupado que não sei e nem pretendo saber de nada que há ali dentro. Contudo, como não sou surda, não pude deixar de ouvir aquelas duas mães em polvorosa, quase morrendo ali sentadas porque o senhor simplesmente afirmou que não havia mais jeito e que os dois rapazes já estavam condenados. E que tipo de advogado é esse, que ao invés de passar alento, de dizer que o trabalho foi realizado no sentido de que os dois sejam absolvidos, vai logo condenando os clientes antes que o juiz assine a sentença? Mas o pior foi ouvir delas que o senhor havia afirmado que os dois seriam condenados e mesmo assim o seu trabalho acabava aí, que não iria mais prosseguir na defesa porque o deputado não iria mais pagar os seus honorários, e se quisessem pagassem do próprio bolso. E é verdade que mandou a coitada da mãe de Jozué vender tudo que tinha para lhe pagar, acaso quisesse que continuasse defendendo o seu filho? Responda Dr. Auto, responda que não acreditei no que ela disse, mas vou acreditar no que o senhor disser...”.
Quando falou que não havia visto nenhum daqueles processos envolvendo os dois, Carmen mentiu premeditadamente. Teria de ser assim, jogando a isca na boca do tubarão. E o advogado, quase fora de si, não respondeu nada, procurou apenas desconversar:
“Mas você mexeu na minha papelada, você pode muito bem ter mexido nos processos daqueles dois”. E correu para o móvel e de lá saiu com os dois processos, bem seguros debaixo do braço, como se estivesse com medo que alguém tentasse tirá-los dali. Rapidamente se dirigiu até sua sala, guardou-os no cofre particular e depois retornou mais calmo. Coisa que durou somente um instante, pois no momento seguinte Carmen perguntou:
“O que o senhor procura esconder tanto com relação a Paulo e Jozué, será o erro do advogado ou do homem?”.

                                                  continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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